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MMA: Esporte, violência e capitalismo

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 Depois da 142º edição do UFC, realizada no Brasil, lotar a HSBC Arena, não cabe dúvida, o MMA (sigla, em inglês, para Artes Marciais Mistas), o antigo vale-tudo, é o esporte do momento. Sua popularidade, lucratividade e publicidade atingem patamares próximos ao mundo do futebol. Tal como os grandes jogadores de futebol, seus principais lutadores são profundamente midiatizáveis; tratados como verdadeiros ídolos pelos fãs e como excelentes “marcas publicitárias” pra campanhas de marketing de produtos e mercadorias variadas. Não à toa que, nos Estados Unidos, o MMA derrotou o outrora glamoroso e clássico boxe, “a nobre arte” dos esportes de luta modernos. Tornou-se, então, nos últimos tempos, uma verdadeira febre mundial e uma das mais lucrativas indústrias no mundo dos esportes.

 No entanto, como quase tudo na vida, o Mixed Marcial Arts (Artes Marciais Mistas) não é unanimidade. Seu sucesso é acompanhado por críticas e desconfianças. Questiona-se seu estatuto como esporte, suas consequências lesivas ao corpo e seu poder de influência negativo junto ao público. Para uma porção considerável do público, trata-se de uma modalidade esportiva repleta de imagens bastante fortes: sangue, hematomas, fraturas e desmaios provocados por chutes, joelhadas e socos fortíssimos e certeiros, estrangulamentos. No Brasil, em particular, a resistência e desconfiança sobre o MMA já chegou, inclusive, no campo da política. O deputado federal José Mentor, do PT-SP, elaborou um projeto de lei cujo objetivo consiste exatamente em proibir a transmissão, não importa o horário, de lutas marciais não-olímpicas na televisão, no caso o MMA, entre elas.

Se observarmos com um pouco de atenção o MMA, em especial, o entusiasmo de seus fãs com as lutas, é interessante notar como parece estar em jogo uma mudança ou variação de nossa sensibilidade a propósito da violência. Explico-me: a violência que tanto tememos e repudiamos na vida cotidiana transforme-se no interior deste espetáculo de entretenimento em algo extremamente sedutor, fascinante e mobilizador. Diante do qual nossas reações rotineiras transformam-se, dessa vez, em excitação, empolgação, torcida, apostas e diversão. Em síntese, em lazer, fruição e passatempo. Imagens sangrentas e ferimentos cuja visão, na vida diária, nos fariam facilmente desviar o olhar noutra direção ou nos causariam profundo mal-estar e repulsa, no Octógono, ao contrário, geram brados exultantes de deleite, urros e pulos de alegria, êxtase.

 Como, então, compreender tal ambiguidade da violência ou a variação de nossa sensibilidade e percepção a seu respeito? Ou melhor, como explicar o poder do MMA e outros esportes de combate em metamorfosear nossas reações habituais em relação à violência e à ferocidade, isto é, enxergar estas últimas duma maneira completamente distinta da convencionada no cotidiano?

 Diferente do que se pensa a resposta não radica na banalização da violência, na satisfação de pulsões primitivas do homem ou no suposto regresso do laço social à condição de barbárie. A resposta a essa inquietante pergunta está onde menos se imaginaria encontrá-la: no elevado grau de civilização que atingimos.

 Evidentemente a maneira como vemos e sentimos as coisas varia segundo as situações ou contextos nos quais atuamos e interagimos. É óbvio que as pessoas sabem que a violência que ocorre no Óctogano não é da mesma natureza daquela que assola as grandes cidades, seja em crimes ou acidentes. É um esporte, dirão. Porém, o que essa explicação contextualizada não explica é que para pensarmos a violência como legítima, permitida e aprazível segundo a sua inserção e espaço, ela necessitou de uma história, de um conjunto de processos de mudança que nos inculcou tal sensibilidade e percepção. Não são simplesmente os contextos em si mesmos mas os processos históricos e sociais que formaram os modos de sentir e avaliar das pessoas e que criaram os próprios contextos e atividades dentro dos quais, como o esporte, a força e a agressão físicas são consideradas legítimas e permitidas.

 Nossa capacidade de relacionar-se com a violência como um meio de lazer e passatempo, como uma atividade de excitação e fruição, como parece sugerir o MMA, é, na verdade, uma conquista civilizatória, uma evolução, se quiserem, de nossa sociedade. Ela é fruto do processo que culminou no que orgulhosamente chamamos de condutas, comportamentos e relações civilizadas.

 Um dos grandes sociólogos do século XX, Norbert Elias captou essa importante ligação entre o surgimento do esporte moderno e a pacificação das relações e tensões. Durante muito tempo, a violência e a utilização da força física foram atributos livres de qualquer regulação externa. Nas sociedades modernas, no entanto, e o esporte é ao mesmo tempo um sintoma e uma contribuição a esta ideia, o exercício da violência e o uso da força física devem se submeter a regras e a leis que prescrevam seus espaços, formas e limites autorizados.

 Numa sociedade regulamentada em várias de suas atividades, o esporte moderno surge como uma invenção capaz de liberar tensões e emoções sob uma forma pacífica e regrada, isto é, de extravasá-las de maneira controlada e sem maiores riscos por causa da vigilância e predisposição que ele implica na obediência de regras que estabelecem os limites da força física e da violência empregadas no jogo ou contra o adversário. De uma só vez, com o esporte, temos, por um lado, uma fonte de excitação e de liberação das emoções e tensões capaz de aliviar as cobranças e pressões sociais desgastantes conferindo-lhes novos objetos e ligações, e, por outro, um impulso civilizador de autocontrole dessas mesmas emoções e tensões graças a disposição de respeito às regras formalizadas e uniformes que codificam as condutas permitidas e não-permitidas dos indivíduos.

Visto por essa ótica, os impulsos agressivos e tensões dos atletas convertem-se em autocontrole e disciplina. Não são brigadores de rua que se engalfinham uns com os outros movidos por ira, vingança e descontrole emocional. Pelo contrário, neles  sobressaem a concentração e a frieza.

 Quanto ao público, podemos afirmar, na esteira das ideias de Elias sobre a esportização e seu papel civilizador, que o MMA proporciona um deslocamento do prazer experimentado em praticar a violência para o prazer de ver/consumir a violência cumprir-se. O prazer não é fruto do gozo com a pura e bruta violência, mas deriva da excitação com o jogo que se desenrola no equilíbrio tenso entre a força dos atos e dos golpes com a força da lei. No público consumidor os impulsos agressivos e tensões transformam-se em fruição, excitação e prazer. Em ambos, temos um redirecionamento e transformação qualitativa do foco e da energia da violência. Eis aí, uma importante contribuição dos esportes ao estilo do MMA.

 Porém, se quisermos levar à sério o MMA como objeto de análise, há, por último, um elemento a que deveríamos indagar se tal não desestabiliza em alguma medida essa relação entre esporte e pacificação/sublimação da violência que aqui traçamos. Afinal, no coração do MMA pulsa a motivação que impulsiona todo empreendimento capitalista; a busca impiedosa e incessante por lucro. Os lutadores não são apenas atletas. Eles são também mercadorias vivas feitas de carne e sangue, como diria Loïc Wacquant a propósito dos boxeadores, cuja força e técnica do corpo são instrumentalizadas pra gerar o máximo possível de dinheiro, com patrocínios, cotas de TV, consumo, empresários, propagandas, etc..

 A questão que resta perguntar é se no MMA as regras e técnicas, seu impulso civilizador, prevalecem sobre o ímpeto do lucro, e, assim, saber se ele oferece não o melhor combate mas o melhor espetáculo do ponto de vista da busca impiedosa pela maior e mais lucrativa capitalização econômica.

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