Por Thadeu Brandão*,
Sente-se, nos dias atuais, um clima de insegurança pública. Os jornais, as mídias televisivas, escritas e eletrônicas alardeiam e mostram cotidianamente os eventos: assaltos, roubos, furtos e homicídios. O cidadão, mesmo que nunca tenha sofrido qualquer tipo de violência, sente-se indefeso e busca no Estado – ou no gigantesco aparato de segurança privada que aumenta vertiginosamente a cada dia – uma sensação de segurança. Diante do quadro, setores significativos da população, notadamente da classe média, se armam e buscam defender seu patrimônio material e suas vidas neste aparente quadro hobbesiano de “guerra de todos contra todos”. Gritam-se aos quatro ventos: “bandido bom é bandido morto”.
Alguns pontos devem ser esclarecidos antes de entrar no cerne da questão, ao menos sob a forma de uma reflexão mais ampla.
Primeiro, por mais que espante o leitor, vivemos na época mais segura da história humana. Isso mesmo. Corroborando os dados históricos, nunca se matou tão pouco. As prováveis taxas de homicídios e de criminalidade durante a história sempre foram altas. Com o processo que Nobert Elias chamou de “civilizador”, houve um decréscimo da violência contínua, aliado a um crescente aumento das maneiras de agir mais conciliatórias. Isso tudo coincidindo, obviamente, com a emergência dos Estados Nação e sua monopolização da violência legítima. Guerras e salteadores eram presença constante na vida das pessoas antes disso. Na Europa, por exemplo, as taxas caíram em mais de 1000% somente nos últimos 100 anos. O Brasil, apesar dos alarmantes quadros de violência, também sofreu essa queda continuada que ainda não parou.
Segundo, criminalidade é um fenômeno difícil de medir cientificamente. Os dados apresentados são apenas uma pequena fatia da realidade, onde a maior parte dos delitos cai naquilo que os criminólogos chamam de “buraco negro criminal”. O maior causador desse problema é a subnotificação dos delitos por parte da população. Outro fator são as políticas de combate à criminalidade que estão sujeitas às pressões políticas de cada país, região ou cidade. Em geral, o que temos são amostras insuficientes até mesmo para apontar tendências, principalmente na realidade brasileira. Daí a opção pelo homicídio como indicador de violência. Cadáveres falam por si. São a amostra mais brutal da realidade violenta.
Assim, qualquer avaliação mais acurada da violência ou da criminalidade passa, pelo meu entender, pelo estudo dos homicídios. Neste sentido, a situação brasileira ainda é extremamente grave. A Europa apresenta uma média de 1 homicídio para cada 100 mil habitantes. Os Estados Unidos, por sua vez, são seis vezes mais violentos: 6/100 mil habitantes. O Brasil vai muito mais além. Estamos em cerca de 25 homicídios por 100 mil habitantes, um dos maiores índices do mundo.
Além de alto, o perfil da ampla maioria das vítimas é socialmente excludente: homem, de 14 a 24 anos, pardo ou negro, pobre ou miserável, segundo o Mapa da Violência 2011. Esse é o retrato mais nu e cru desse processo que Loic Wacquant chamou acertadamente de “criminalização da pobreza”. Pois não apenas este é o perfil das vítimas de homicídio, mas também da absoluta maioria dos apenados do sistema penal tupiniquim. Mata-se e prende-se muito no Brasil. Sabemos quem são as vítimas e os “bandidos”. Advêm do mesmo grupo social, sujeito a mais criminalização e preconceito.
Não caro leitor. Preto, pobre e jovem não é perfil de criminosos potenciais. Esse é o perfil de vítimas potenciais de um processo de exclusão social mais amplo que historicamente nos acompanham desde tempos coloniais. Sei que pode estar pensando: “e nós que sofremos com isso?”. Estatisticamente, se você estiver fora deste perfil, suas chances de morrer assassinado são cerca de 40 vezes menores.
Fixo-me na questão dos homicídios por escolha metodológica. Por isso, vamos trazer mais um ponto. Natal tem uma taxa de cerca de 35 homicídios por 100 mil habitantes, bem acima da média nacional. Assustou-se? Mossoró, de onde escrevo, tem o dobro da taxa natalense. E porque não vemos isso nos noticiários de forma alarmante? Porque o perfil de quem morre não interessa à média da população. Ao contrário, justificamos e legitimamos essas mortes com o argumento de que as vítimas escolheram seu destino, pois viraram “bandidos”.
A questão é que, quando fala-se em “bandido”, referimo-nos ao perfil supracitado. Não falamos dos estelionatários, rufiões, agiotas, corruptos, etc., que passeiam em seus carrões, moram em seus apartamentos de luxo e transitam nos mais caros restaurantes. Eles não são “ameaças públicas”. Embora representem um dano econômico e social enorme em suas ações criminosas, não são taxados como tais. Um desvio de verba da saúde pode levar (e leva!) à morte um sem número de pessoas. Um dano incomparável frente a um ladrão de celular. Mas, repito, este último enquadra-se no perfil que, socialmente, representa uma ameaça.
Assim, o “Bandido morto bom” é o bandido pobre, pardo ou negro. Afinal, os colarinhos brancos não invadem nossas casas e nosso sagrado patrimônio. Nos roubam na surdina e dentro de uma legitimidade sócio-cultural onde ainda são chamados de “doutor”.
*Prof. Dr. Thadeu de Sousa Brandão
Grupo de Estudos Desenvolvimento e Violência – GEDEV
Departamento de Agrotecnologia e Ciências Sociais – DACS
Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA