Por Diego José Fernandes Freire
(Historiador e Professor de História)
Nos últimos dias na cidade de Natal, um acontecimento ganhou considerável repercussão nas redes sociais e demais mídias eletrônicas. Trata-se da derrubada de um casarão antigo no último dia 22 do corrente mês. O antigo prédio em estilo neoclássico compunha a paisagem natalense desde 1920, e de seu início até os dias de hoje abrigou importantes iniciativas, como o Conservatório de Música Frederico Chopin . Nos últimos anos, no estabelecimento funcionava um restaurante, muito freqüentado por estudantes e trabalhadores que realizavam suas atividades profissionais próximo ao local. A derrubada aconteceu em poucas horas, em plena luz do dia, em razão do imóvel pertencer a empresa Empreendimentos Farmacêuticos Globo LTDA.
Segundo o órgão responsável pelas construções e demolições na cidade, a Secretária Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo (SEMURB), a derrubada foi ilegal, já que não houve nenhuma autorização por parte do poder público. Isto é, os empresários simplesmente armaram seus peões com pás, enxadas e tratores, e desceram a malha em cima do antigo prédio do início do século passado. Rapidamente, vários anos de história viraram um grande amontoada de entulhos. Embora a poeira não tenha ainda baixado, tal fato permite uma importante reflexão sobre o modo como nossa cidade se relaciona com sua história municipal.
O que faz um empresário demolir um prédio histórico? O que se passa na cabeça de alguém que realiza uma demolição de um casarão antigo? O quê o autoriza, mesmo quando o poder público não lhe confere uma autorização formal?
Ora, a percepção do caráter histórico dos equipamentos urbanos é da ordem do visível e do tangível: observa-se e constata-se. Daí porque um turista facilmente percebe – logo fotografa – uma construção histórica. A arquitetura do antigo casarão visualmente chamava a atenção, na medida em que se diferenciava dos demais prédios ao seu redor. Suas janelas largas e amarelas, suas portas em formato de arco, além de sua decoração azulada neocolonial, davam bem o tom do passado, da construção antiga, da sua face não contemporânea. Porém, se a percepção da arquitetura histórica é quase pré-reflexiva, a valorização desta dimensão não o é, ou seja, é necessário uma educação histórico-patrimonial para que os indivíduos venham a valorar positivamente um monumento. As pessoas aprendem a respeitar e a valorizar os prédios históricos, a partir dos mais diversos processos formativos. Nesse sentido, as instituições culturais (escolas, universidades, museus, teatros, entre outras) possuem um papel pedagógico fundamental para fomentar um senso histórico-patrimonial. A cidade, todavia, também pode contribuir para com tal aprendizado. Estará a cidade de Natal realizando esta função?
Infelizmente, a urbe em que vivemos parece não estar muito preocupada em desenvolver uma educação histórico-patrimonial nos seus cidadãos. Na verdade, o poder público em Natal muito pouco faz pela manutenção e preservação de sua própria história e memória. Estas dimensões da nossa cidade são, cotidianamente, desrespeitadas e não levadas em consideração. Daí verificarmos prédios históricos abandonados e carentes de reformas, como o Teatro Alberto Maranhão, o forte dos Reis Magos, a antiga Rodoviária, a Pinacoteca, o Instituto Histórico e Geográfico (IHG-RN), a Escola Augusto Severo e vários outros equipamentos urbanos que, apesar de contarem a história de Natal, não recebem o merecido cuidado e relevância. O museu Café Filho, importante estabelecimento histórico, até um tempo deste estava fechado, chegando a sofres invasões e depredações. Basta andar pelos bairros da Cidade Alta, Ribeira e Rocas, onde os prédios tombados e bem mantidos contam-se nos dedos de uma só mão, para percebermos a falta de valorização da história local. As pichações aos bustos e as estatuas exemplificam também o cenário “anti-histórico” de nossa realidade. Outro sinal eloqüente da ausência de preocupação histórica foi a vistoria que o Ministério Público fez em 47 prédios históricos de Natal. O sinal de alerta para a preservação da história e da memória municipal está ligado há muito tempo. Nós é que não nos preocupamos.
No caso do casarão recentemente derrubado, é importante apontar que o mesmo não estava tombado, em razão das sucessivas alterações físicas que passou ao longo do tempo. Nem mesmo registros históricos evidentes para contar sua trajetória havia no local, razão pela qual as reportagens não trazem muitas informações sobre o prédio. É bastante sintomático que o interesse pelo antigo casarão tenha surgido justamente agora, após a sua destruição: enquanto era presente, atual, não se vislumbrava sua história, o cardápio atraia para si quase toda a atenção. O interesse histórico, a vontade de conhecer e preservar, deve anteceder a destruição, atuando assim para a manutenção de bens históricos. O estabelecimento em apreço estava abandonado, entregue aos diferentes donos que não recebiam as condições necessárias para preservar e contar a história do prédio. A manutenção da história urbana deve fazer parte do rol de políticas públicas do Município e do Estado, não devendo ser relegada unicamente às associações autônomas de preservação patrimonial. Nesse sentido, as últimas e atuais gestões são um verdadeiro desastre.
Diante desse quadro de pouco investimento histórico-patrimonial, o sentimento de desvalorização da história grassa no ar, galopa por entre as mentes dos citadinos, tornando ações como a ocorrida no dia 22 de Agosto possíveis sem maiores alardes e comoção política. O senso histórico-patrimonial precisa estar socialmente enraizado, para que possa frear certos impulsos de desrespeito e destruição ao passado.
Assim, o desaparecimento do agora “saudosa maloca”, denominação que os arquitetos natalenses que organizaram um protesto deram ao antigo casarão, não me parece ser um fato arbitrário, fruto de uma mente insana ligada ao “capitalismo selvagem e predatório”. Antes, a destruição operada inscreve-se muito bem no quadro geral de desvalorização de nossa história. Os natalenses sentem muito pouco apreço ao seu passado urbano, dado que este não é devidamente conservado e vivificado em seu cotidiano. O passado, conservado em um prédio, não pode ser algo morto, parado, estático. É preciso vivificá-lo com várias ações e projetos, a fim de que a sociedade o perceba e aprenda o seu valor. Provavelmente, muitos natalenses acham que um prédio histórico vale apenas como enfeite, como decoração, como construção diferente, “estilosa”, ou quem sabe como cenário para compor uma foto.
Na nossa sociedade local, parece existir um sentimento coletivo de não preocupação com o passado de nossa cidade. Atesta isso o fato de que apenas os arquitetos, classe tradicionalmente preocupada com a preservação dos prédios histórico, ter se mobilizado para um protesto. Ou seja, apenas um único grupo. Cadê os historiadores? Os professores de história? O IHG-RN? Os jornalistas? A grande imprensa? A sociedade civil? É preciso muito mais do que curtidas para desenvolver na sociedade natalense uma educação histórico-patrimonial e uma cultura de valorização da memória histórica.