Search
Close this search box.

Não é racismo espancar assaltante negro até a morte se a polícia não dá conta

Compartilhar conteúdo:

Jean Wyllys divulgou, em mensagem no Face, um comentário sobre Cleydenilson Pereira Silva, um jovem em São Luís, morto por espancamento pela população. Segundo o Extra, este já é o décimo caso de linchamento registrado no Maranhão em dezoito meses. Dezoito meses nos quais a população maranhense, sucumbindo ao desespero e à falta de segurança pública adequada, faz as vezes de juiz e algoz dos acusados. Em relação à matéria do jornal, no entanto, o deputado postou uma foto na qual se encontra outro rapaz. A diferença: um negro (a vítima do espancamento, após uma tentativa de assalto), amarrado ao poste, nu e ensaguentado da surra que os moradores deram – enquanto outro jovem, branco, está apenas deitado, vestido, aparentemente sem maiores danos. A foto, postada em montagem com a obra “Escravo no pelourinho sendo açoitado” (Debret), deu – como sempre dá quando se trata de racismo – o que comentar na postagem: gente solidária à morte do suspeito e gente enraivecida cobrando de Jean a responsabilidade direta pelo problema da segurança pública maranhense.

Qualquer semelhança não é mera coincidência

Fazendo coro a esses interlocutores raivosos, três pessoas comentaram a postagem em minha linha do tempo. Duas delas têm passabilidade branca – o que, independente de como elas se caracterizem, já as dota de vantagens variadas e tratamentos desiguais em uma sociedade racista como a brasileira. A outra não foi agraciada por essa passabilidade, mas se comporta como se tivesse. O consenso dos comentários das três pessoas, contudo, pode ser resumido nos seguintes pontos:

1) existe um problema crônico de impunidade quanto a criminosos, que gera insatisfação (pra dizer o mínimo) e desespero na população em geral, sobretudo nas camadas mais carentes. Uma das pessoas, embora pondere o sensacionalismo da mídia, situa duas frases de leitura questionável: “(…) ele foi pego roubando e a população fez isso”;

2) duas delas dizem que foi um absurdo associar o linchamento do jovem ao castigo retratado por Debret, questionando o resgate histórico dessa passagem – “erro crasso”, segundo uma delas. Segundo essa mesma pessoa, “o escravo era amarrado ao tronco por motivos banais”;

3) a pessoa que falou em erro crasso com a comparação das imagens afirmou, ainda, que o negro foi amarrado por pessoas pobres e negras. Segundo ele, não há validade no discurso de opressão do branco sobre o negro (ao menos não no caso de Cleydenilson).

Eu me cocei pra responder ali mesmo, mas um amigo meu veio e comentou. Em vez disso, preferi comentar aqui, tendo em vista a visibilidade que merece a questão racial no Brasil. É preocupante ver o discurso racista subjacente ao primeiro ponto acima e escancarado nos dois últimos. Ora, desde quando o opressor tem qualificação plena pra falar da condição do oprimido? E nem mencionei que a pessoa do “erro crasso” resolve a questão racial com recurso à naturalização da violência e maldade na espécie humana. Segundo ele, o ser humano é violento desde sempre, e não é a cor A ou B que vai fazer diferença. Já vimos aonde esse papo naturalizante leva, mas tem gente que ainda insiste em nivelar por baixo – como se a mera presença de uma aptidão para a violência ajudasse a compreender o quadro.

Cansa explicar ao opressor quais são os efeitos da opressão que ele exerce. Mesmo assim, vou me focar nos três pontos acima e comentá-los:

1) em que pese o fato de o Brasil ser um dos países mais violentos do planeta, cabe lembrar que o desespero não é desculpa pra fazer “justiça” com as próprias mãos. Uma população ensandecida como a que linchou o jovem negro em São Luís se esquece de que o próprio exemplo retroalimenta uma realidade já existente: os maus tratos dispensados a suspeitos e condenados no sistema de segurança brasileiro. São uma massa histérica a aplaudir (ainda que inconscientemente) e reproduzir as atitudes de policiais, agentes penitenciários e semelhantes, que já exercem o abuso de poder sobre os presos, que são em grande parte negros como o jovem assassinado. E são esses negros que mais sofrem com as agruras da segurança pública brasileira;

2) negar a relação entre a pintura de Debret e a foto que tiraram do negro linchado é má-fé pura, alimentada por uma falta de memória e de sensibilidade notórias. Ora, se o escravo na pintura de Debret recebia chibatadas por motivos fúteis, como pretende um de meus interlocutores brancos (e foram os dois brancos que negaram a relação entre as imagens – o que é dolorosamente sintomático da existência de uma zona de conforto), será que aqueles que lincharam tinham realmente motivos sérios? É de uma hipocrisia sem tamanho responder ou sugerir que sim. Além disso, dizer que o jovem foi pego roubando e espancado por isso dá indícios de pelo menos duas coisas: indiferença ou cumplicidade com o gesto dos moradores que lincharam. Afinal de contas, num país com segurança pública deficiente e que só se sabe reconhecer o racismo no outro, é perfeitamente compreensível que o “cidadão de bem” faça o que a polícia deveria fazer;

3) a última bravata a ser comentada é a não validade do discurso de opressão do branco sobre o negro. Falta a essa pessoa entender – e sobretudo aceitar – que o racismo brasileiro é estrutural. Significa dizer que não apenas negros sofrem com a falta de ascensão socioeconômica, com falta de políticas públicas adequadas e sua implementação efetiva, com um tratamento desigual por parte da polícia. A estrutura racista é tão fina e tão penetrante no corpo social que mesmo negros podem oprimir negros (1). Estou falando de negros aqui, mas cabe salientar que a própria população indígena – e o Maranhão possui uma das maiores populações negras e indígenas do País – também sofre com a falta de atenção do poder público. É uma estrutura que não vem de hoje, e que custa a ser desmontada de modo ostensivo.

Não posso esperar que os três interlocutores a que me referi  no início deste texto (sobretudo os que têm passabilidade branca) mudem de mentalidade rápido. O discurso deles dá mostras de uma tremenda falta de sensibilidade para a questão racial no Brasil, mais do que mero desconhecimento. Mas talvez eles precisem ver um experimento mental simples, como o proposto no filme “Tempo de Matar” (Joel Schumacher, 1996), que se passa no Mississipi, um dos estados americanos com considerável percentual de negros em sua população. No filme, um advogado branco (interpretado por Matthew McConaughey) defende um homem negro (Samuel Jackson) que assassinou, ainda no julgamento, os homens que estupraram e assassinaram sua filha. Em outro julgamento (desta vez do homem negro, por assassinar os criminosos), o advogado propõe ao júri um experimento: imaginar, com detalhes narrados pelo advogado, uma garota sendo estuprada. Ao final de toda a narrativa, ele pede: “agora imaginem uma menina branca”. O pai da garota morta foi absolvido.

Qual é o ponto do filme? Devemos fazer a justiça com as próprias mãos? Não. O ponto é que a vingança do pai, que se seguiu ao estupro sofrido pela filha negra, foi mais malvista do que seria a vingança de uma filha branca pelo pai branco em circunstâncias semelhantes. A mesma coisa, de modo invertido, aconteceu em São Luís com Cleydenilson. Poucos se comoveram com sua morte. SE Cleydenilson fosse branco – e o SE aqui vai em maiúscula de propósito -, a coisa provavelmente seria outra – principalmente se, além de branco, Cleydenilson fosse de classe média. Preciso lembrar que foi exatamente a outra coisa que aconteceu a Thor Batista e aos jovens que incineraram Galdino Pataxó em Brasília? É, parece que preciso sim. Num país que tem uma população conivente com o linchamento de jovens negros, toda lembrança é fundamental. Resgatar Debret, como Jean Wyllys fez, é só uma de muitas estratégias possíveis para entranhar essa lembrança na população branca. Racismo mata; quando não mata, ajuda.

__________________________________

(1) Se é tão absurdo pensar nisso, basta lembrar o que os extremistas hutus fizeram, em Ruanda, com tutsis e hutus moderados no ano de 1994. Um grupo negro oprimindo outro grupo negro. A grande diferença em relação ao Brasil é que os negros brasileiros não tiram vantagens significativas da eventual opressão racista que exercerem, se comparados aos brancos.