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Carta de Lili ao presidente

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imageCaro presidente,

Foi há quase cem anos, mas lembro como se fosse ontem. Era início de tarde no campo da Vila Cincinato, em frente a residência do governador Ferreira Chaves. Ao fundo, em direção às dunas cobertas por mata atlântica, estavam alguns simpatizantes curiosos com a novidade na cidade.

Ainda eram poucos, pois dividíamos as atenções com as atrações do cinema Politheama e do circo do Seu Striguini, que naqueles dias estava por aqui. Mas aqueles foram os primeiros. Nunca imaginei que aquilo que vivenciei naqueles 20 de setembro, seria tão lembrado e festejado.

E não dava para imaginar mesmo. Nossa cidade era pequena, presidente. Pacata e provinciana. Eram apenas 27 mil natalenses por aqui. Longe das milhares de agora. Desde que voltamos da capital, nutríamos uma vontade. Vontade de fazer história.

A ideia se materializou dias antes. Eu, meu irmão João Emílio e um grupo de amigos decidimos na tarde de 29 de junho, no casarão de fachada alta e porta larga, de meu estimado pai Avelino, que chegara finalmente a hora. Tínhamos que trazer aquele jogo para Natal.

Meu irmão assumiu a responsabilidade de ser o nosso primeiro presidente. Tinha o perfil ideal e a cara de um homem sério para comandar a realização dos nossos sonhos. Ali mesmo, me dispus a ser nosso goalkeeper. Dali, pude assistir a cada um dos treze gols que fizemos naquele dia. Fui um espectador com visão privilegiada da história. Treze a um. Eles não viram nem a cor da bola.

Presidente, foi a partir daquele dia que nos tornamos para sempre o grande Rei do Foot-ball, como escreveu o poeta Deolindo Lima, um ano após o início dessa jornada. E que jornada. Confesso que não imaginávamos que aquela reunião de jovens da alta sociedade da época daria origem, tempos depois, ao maior fenômeno de aglutinação de multidões dessa cidade. Muito mais até que o cinema, o teatro e as festas religiosas que tínhamos nessa província.

Ao meu lado, presidente, estavam meus companheiros Batalha, Borges, Cabral, Paraguay, Freire, Bigois, Moacyr, Mandú, Nóbrega e Mousinho. Já ouviu falar de algum deles? Todos encantados por aquele jogo vindo da Europa. Os primeiros guerreiros do nosso manto alvinegro, da nossa flama querida.

Ao apito final de Júlio Meira e Sá, fechei meus olhos por alguns segundos e levantei os braços, como quem agradece a Deus por algo muito bom, e vi passar, em clarões, cenas do que viria ser o nosso sonho no futuro.

Vislumbrei um ABC Futebol Clube recordista de títulos, presidente. Vi um clube do povo, um campeão das multidões. Enxerguei nossos representantes excursionando mundo à fora, ostentando nosso escudo e nossas estrelas no peito. Vi grandes nomes defendendo nossas cores e uma multidão cantando nosso hino em vozes altas e trêmulas de emoção e alegria. Avistei uma Frasqueira gritando gol. Um bola de prata. Um louro de cabelos esvoaçantes. Um menino magrelo agradecendo aos céus. Tive a certeza que aquela ideia fora a mais incrível do mundo.

Presidente, o senhor não tem noção do tamanho da minha emoção e orgulho de ter sido um dos responsáveis de plantar a semente do que hoje é o nosso centenário ABC. É imensurável.

Por isso, presidente, espero e exijo que nunca deixe de regar as nossas raízes, para que essa história continue sendo contada por muito mais que cem anos. Tome partido. Cuide para que o nosso ABC seja sempre o mais querido e, que acima de tudo, continue nos dando orgulho de ser da terra potiguar.

Ass.: Avelino Alves Freire Filho (Lili), o primeiro goleiro e um dos fundadores do ABC Futebol Clube.