“Admiro muito quem sabe reconhecer, como os verdadeiros caçadores, não os de sociedades de caça, mas os que sabem reconhecer o animal que passou por ali, aí eles são animais, têm, com o animal, uma relação animal. É isso ter uma relação animal com o animal. É formidável” (Gilles Deleuze).
Na última páscoa um amigo espanhol deu a ideia de aproveitar o domingo se fartando com uma autêntica paella valenciana. Com ajuda de sua imensa panela ibérica reproduziria a receita sem problemas. Fez questão de ressaltar as peculiaridades do prato ao mesmo tempo em que destilava críticas ao arremedo preparado por Ana Maria Braga na TV. Joder, no hay crustaceos!
Só a partir daquela explicação tomamos conhecimento da presença do coelho como ingrediente indispensável, o símbolo da fertilidade e da vida nova.
Embora estivesse no Brasil há pouco tempo, o espanhol já havia constatado o preço de certas iguarias nas casas requintadas. Decidimos, então, recorrer à feira de Casa Amarela (no subúrbio do Recife) em busca da carne que faltava.
Dois coelhos dividiam a gaiola. Escolhemos aquele que aparentava melhor vigor e pedimos para o vendedor abatê-lo. Como não queríamos presenciar o ato, voltamos à atenção para as hortaliças. Meia hora depois apanhamos a carne já tratada.
À parte os detalhes gustativos e o convívio proporcionado pelo prato, ambos prazerosos, diga-se de passagem, o ato de escolher o animal despertou em nós sentimentos e reflexões pouco suscetíveis de se ter numa seção de frios de supermercado. Havia naquela jaula um ser de extrema complexidade, admirável mesmo, que sucumbiu a uma escolha nossa. Não se tratava de uma “peça” aparentemente inorgânica envolta em plástico, imersa na lógica asséptica: “quanto mais a vácuo melhor”. Já notaram que, atualmente, a origem da carne é ocultada como se carregasse uma mácula? Quanto mais disfarçada (cortes pequenos, desossados, defumados, marinados) mais atrativa parece?
Foi por esse aspecto canastrão da indústria – coerente até com as atuações de certo ator famoso – que ir à feira naquele dia escolher o animal fez com que o animal se revelasse para nós. Penso que essa revelação é um fenômeno cada vez mais inviabilizado no mundo contemporâneo. A lógica cartesiana define brutalmente o lugar das “criaturas brutas”. Dominá-las, em todos os níveis, inclusive em nós mesmos, naquilo que compartilhamos com elas, é parte fundamental do ideário civilizatório. Os selvagens estão longe ou são distanciados de alguma maneira. Já entre os domésticos, há aqueles que instituímos de humanidade e os que destituímos de animalidade. Em ambos os casos resta pouco animal, o primeiro encarna um pseudo-humano (os pets) e o segundo um autômato para o trabalho ou matéria prima para a indústria (burro, boi, galinha, etc.). Não há gato no gato, boi no boi ou coelho no coelho. Há Ademir e Euzébio (nome dos meus dois gatos humanizados), picanha, fraldinha, presunto e paella.
Estamos certos de que nossas escolhas alimentares têm um impacto no mundo. Argumentos cada vez mais persuasivos, sejam eles de ordem ecológica, médica, econômica, social ou ética surgem para nos fazer repensar o atual modelo de produção e consumo de carne. Embora haja divergências significativas em relação ao melhor caminho, acredito que o passo mais difícil é conceder novo visto de permanência para o animal, retirá-lo da clandestinidade em que se encontra.