Era, de acordo com a minha lembrança, o ano de 1985 na cidade de Libertad, próxima à capital Montevidéu e à beira de um Rio da Prata de águas calmas e serenas, que seguramente contrastava com o momento político conturbado que passava a nação.
Entre 27 de junho de 1973 e 28 de fevereiro de 1985, o Uruguai sentia na pele o período mais conturbado da sua história. Há 30 anos atrás o nosso vizinho de fronteiras vivia sob um regime repressor marcado pela proibição dos partidos políticos, da ilegalização dos sindicatos e perseguição, tortura e execução de opositores.
Um regime capaz de calar até os cantos mais apaixonados e entusiasmados de um estádio de futebol. Um golpe árduo e silencioso, que suprimia os gritos de ajuda diante de uma Montevidéu romântica que, calada, ansiava apenas por novos tempos de paz.
Mas nem tudo estava perdido. Mesmo que tudo que fosse semelhante a uma organização fosse reprimido – inclusive times amadores de futebol – o regime não foi páreo para a astúcia de 22 homens que insistiam em desenhar, enclausurados, as estratégias do jogo dentro e fora das quatro linhas.
Surgia ali, em segredo, uma liga de futebol amadora que desafiava a solidão da mais escura cela da ditadura uruguaia. Um espetáculo, não diferente do que se via lá fora, capaz de levar a plateia – e eu estava nela – ao delírio. Um jogo de equilíbrio extraordinário e sensato.
Não existiam uniformes que diferenciassem os dois times. Jogavam todos pela mesma razão. Não havia fama e sim jogadores em perfeita igualdade de condições. Um confronto de ideais onde não existiam adversários.
Naquele jogo o gramado era de cimento cinzento, sem o verde tradicional dos campos em que a bola rolava com encanto e capricho. O sol abrangia apenas alguns pontos dele, onde conseguisse descobrir espaços livres para irradiar aqueles homens irrequietos.
Em campo, o goleiro Estefanell, no alto de sua pouca estatura e sempre com seus óculos com lentes fundo de garrafa. Liscano, López e Sendic, que formavam uma defesa espetacular e trancafiada como uma cela de prisão. Rosencof e Huidobro, os carregadores de piano do meio de campo e, no comando do ataque, Bonomi, o melhor do time, um exímio cobrador de faltas, antigo camisa 10 dos tempos áureos do futebol, ao lado do cobiçado bigodudo Pepe, que do craque santista, servo de Pelé, herdara apenas o nome.
Os times, formados entre paredes grossas, úmidas e em condições desumanas, entravam em campo como se disputassem uma final de Copa do Mundo dentro de casa. Entravam em cena, não para uma pelada qualquer, mas sim para a última partida, após doze anos de encarceramento.
Até hoje não sei como aquele jogo terminou. Talvez nunca tenha tido fim. Fui libertado aos quarenta e poucos minutos do segundo tempo. Creio que eles também.
De certo, sei que meu time sagrou-se vencedor e que, naquele campo, nunca mais houve ou haverá de acontecer uma partida de futebol, pois enfim, a ditadura terminou!