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O “caso” FIFA e os mitos da corrupção à brasileira

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16768644A prisão de sete dirigentes da FIFA, entre eles o vice-presidente da CBF, José Maria Marin, por montarem uma rede de corrupção entre a principal organização do futebol mundial e empresas de marketing esportivo pode não ser surpreendente, mas é elucidativa para desmontar certos mitos sobre a corrupção. Não é surpreendente porque é preciso ser bastante ingênuo para crer que diante da enormidade de cifras movimentadas pela FIFA, confederações nacionais, eventos, contratos e o relacionamento íntimo dos dirigentes e organizadores do futebol com grandes corporações multinacionais, empresários e até mesmo regimes ditatoriais, o futebol e suas cúpulas transnacionais sejam, com efeito, uma atividade isenta e livre de falcatruas.

O jogo, nos bastidores, é sujo, todos sabem. O que faltava para descobrir o óbvio era empenho e coragem de investigar. Coube ao Departamento de Justiça de um país com pouca tradição no futebol, os EUA, empreender a tarefa de desmontar a engrenagem mafiosa escondida sob a maquiagem do “fair play” e da paixão pelo esporte que a FIFA e suas federações continentais e nacionais filiadas tentam transmitir e difundir ao público. Assim, podemos, com maior clareza, enxergar essas organizações como o que de fato elas são, um balcão de negócios dos poderosos de todo o mundo. Na história do futebol, a FIFA sempre constituiu um cartel que explora economicamente o futebol para o lucro, prestígio e poder de uma pequena casta de indivíduos.

No entanto, a despeito dessas verdades conhecidas, o episódio serve ainda para desconstruir uma outra imagem, esta mais ligada e arraigada na cultura brasileira, qual seja: a singularidade da corrupção enquanto um fenômeno, se não exclusivo, pelo menos cujo protagonismo se deve sempre a ação inescrupulosa dos agentes e instituições do Estado. Dentre os diversos exemplos históricos que colocam em xeque a ideia do Estado como lócus privilegiado da corrupção e do mercado como esfera relativamente livre de tais práticas e vícios, uma verdadeira narrativa oficial entre nós quando se trata de corrupção, resulta interessante e um tanto quanto irônico que seja um caso envolvendo o futebol, ou seja, um importante símbolo da identidade nacional, que ajude a questionar esse outro elemento supostamente fundamente da nossa identidade nacional, a corrupção e o patrimonialismo viscerais do Estado e de seus agentes.

O esquema de corrupção colocado em prática na FIFA – uma organização privada, ressalte-se – por vários de seus principais dirigentes possui todas aquelas características que certo senso comum nacional, de modo seletivo e interessado, adora atribuir ou acentuar como traço essencial e inextirpável de algumas instituições sociais, no caso as do Estado. Estas, por sua vez, carregariam, a um só tempo, a marca de nosso atraso cultural e a prova de que somos uma sociedade que não superou as raízes pré-modernas de sua formação histórica. Ora, a trama de corrupção da FIFA, esta verdadeira multinacional capitalista e globalizada que circula por todas as artérias do sistema econômico, financeiro e político mundial, funcionava de fio a pavio com base em relações personalistas, troca de favores, subornos, vantagens, acertos ilícitos com empresas privadas, extorsão, tráfico de influência, predomínio dos interesses individuais sobre os interesses públicos, desvios, etc.. Enfim, o cardápio completo da corrupção personalista e patrimonialista que, no Brasil, não cansamos de atribuir e enxergar como atributo exclusivo de políticos e funcionários públicos.

Como hão mostrado diversos historiadores e sociólogos em seus estudos, as práticas de corrupção e as relações personalistas não são atributos específicos e essenciais de determinadas épocas, culturas, instituições e formações sociais nem características estruturais de sistemas econômicos e países centrais ou periféricos; na verdade, todos eles, em diferentes graus e segundo lógicas particulares partilham e organizam tramas de corrupção sustentadas numa articulação plural de atores, instituições e interesses. Em sociedades diferenciadas, essa articulação de interesses e atores é caracterizada sempre pela interdependência entre as esferas do mercado e as esferas do Estado. Em suma, a corrupção é uma estratégia de ação para maximizar lucros e vantagens econômicas, sociais e políticas por meios considerados socialmente ílicitos onde quer que o uso desses meios constitua uma oportunidade vantajosa de ser lançada mão para a consecução de algum interesse, que, pelas vias convencionais e lícitas, talvez não fosse possível alcançar ou maximizar seu resultado. Nesse sentido, e tomada como transações econômicas, como nos ensina o sociólogo Mark Granovetter, as práticas de corrupção não são estratégias monopolizadas por esta ou aquela instituição nem por esta ou aquela categoria social.

n-FIFA-large570A ideia de que o setor privado seria menos corrupto, pois a corrupção diminuiria as margens de lucro ou contrariaria os princípios de racionalidade e impessoalidade do mercado, é uma ficção ideológica: uma ficção interessada, aliás, a qual visa, nas disputas de poder entre os atores econômicos e políticas, exatamente enfraquecer as instituições (do Estado) que podem e devem legitimamente fiscalizar e desbaratar as práticas de corrupção. Sem respaldo na realidade, trata-se, portanto, de uma narrativa de justificação dos papéis que, respectivamente, mercado e Estado devem cumprir na sociedade e nas atividades dos indivíduos. No caso, temos, desse modo, uma justificativa ideológica que busca proporcionar aos indivíduos um caminho livre para que eles possam agir sem impedimentos e consequências legais em busca de seus interesses, não importa que meios e artifícios usem.

Em outras palavras, a ser como credo ultraliberal preconiza, a ausência ou enfraquecimento do Estado enquanto esfera essencialmente ineficiente e corrupta produz, com efeito, a pavimentação perfeita para o exercício despreocupado de práticas de corrupção, tanto ao nível do próprio Estado quanto ao nível do mercado. Ora, em não havendo instituições públicas fortes de fiscalização e controle, como o Departamento de Justiça norte-americano ou o Ministério Público e a Polícia Federal brasileira, jamais viriam à tona as tramas de corrupção então deflagradas, investigadas e desmontadas. No momento em que o Congresso está aos voltas, entre idas e vindas, com a questão do financiamento privado de campanhas eleitorais é imprescindível desconstruir os mitos e as pré-noções que embotam uma compreensão mais racional e nuançada sobre o fenômeno da corrupção.