Desde 2011, tramita na Câmara um Projeto de Lei que visa conceder isenção de Imposto de Renda sobre a remuneração de professores. Trata-se da PL 2607/11 do deputado Felipe Bornier (PSD-RJ). De acordo com a proposta, para usufruir do benefício, é preciso que o professor esteja em efetiva atividade docente na rede pública de educação infantil, fundamental, média ou superior. Conforme o autor, além de proporcionar um “alivio financeiro” que maximizaria a renda do professor, a Isenção constituiria um mecanismo de incentivo para tornar a carreira docente e exercício do magistério mais atrativos. Contudo, a aparente intenção “nobre” e a suposta “valorização” das quais se diz imbuir o projeto na defesa da carreira docente são, na verdade, engodos paliativos. Digo mais: esse projeto de lei é profundamente deseducador e contrário ao papel político-pedagógico que os professores, numa sociedade republicana, devem desempenhar. Pensando corporativisticamente, esta PL pode até implicar alguma melhoria financeira para os professores, porém, é um desastre do ponto de vista ético.
O primeiro equívoco do projeto, mas não o mais grave, é acreditar que a isenção de imposto de renda se converteria por si só num fator de atração ao magistério. Ora, em se tratando de escolhas profissionais, é um consenso entre especialistas que os fatores motivacionais de fato decisivos são: 1) as expectativas de carreira e de remuneração; 2) condições de trabalho avançadas para o bom desempenho e que permitam qualidade de vida e tempo para outras atividades sociais e, por último, mas não menos importante; 3) o reconhecimento e status social de que goza a profissão numa sociedade particular. É o atendimento satisfatório de todos esses fatores o principal responsável, por exemplo, ao contrário de muitos países, inclusive o Brasil, pelo fato da profissão de professor ser uma das mais desejadas e procuradas em lugares como Finlândia, Coréia do Sul e Canadá – países, aliás, com reconhecidos e invejáveis índices e resultados educacionais. No Brasil, salvo, em alguma medida, as exceções mais graduadas que estão nas “ilhas federais de ensino técnico e superior”, ser professor significa exatamente assumir o ônus de que, dificilmente, irá se usufruir de bons salários, condições de trabalho adequadas e satisfatórias, planos de carreiras vantajosos e, muito menos, prestígio social.
Nesse sentido, em vez de expectativas de ganhos materiais e simbólicos, a escolha por ser professor significa, com efeito, um empreendimento de sacrifício pessoal e social, o qual se realiza em nome do que se acredita ser uma vocação e uma forma de autorrealização individual ou, então, a melhor das oportunidades profissionais disponíveis e possíveis que restou diante das minhas capacidades e chances de vida – cursos menos concorridos, fácil inserção no mercado de trabalho, etc.. Não é por acaso, portanto, que o discurso segundo o qual o magistério é uma forma de sacerdócio, uma missão elevada, de abnegação, de que se é professor por amor, e não por outra coisa, possua tanta força e aceitação social. Esse discurso serve como justificação moral do sacrifício e do baixo prestígio social gozado. Conclusão: ao invés de fatores de estímulos o que temos, de fato, são fatores estruturais de inibição e recusa do magistério enquanto profissão vantajosa, os quais, diga-se, não serão combatidos nem sequer atenuados por “incentivos” fiscais e tributários.
Se o que se pretende é oferecer “subsídios e compensações financeiras” à renda do professor, existem formas bem mais razoáveis, as quais, cumpre dizer novamente, não funcionam como mecanismos de atração profissional e, ressalte-se, sequer seriam necessárias se houvesse plenamente um salário condizente com o papel da profissão para o desenvolvimento do país. Ao invés de “privilégios tributários” poder-se-ia estabelecer, na verdade, aportes que funcionem enquanto reconhecimento da natureza peculiar da atividade docente, a saber: incrementar os descontos em livros e em outros bens e eventos culturais, tais como cinema, teatro, museus, concertos e apresentações artísticas, acesso à curso de línguas etc.. Afinal, professor é uma profissão que exige uma dedicação especial e contínua de aquisição de conhecimentos e cultura em geral, o que implica, portanto, um elevado gasto mensal em livros e outros bens e serviços culturais.
De todo modo, o mais grave da PL 2607/11 não reside na sua intenção assistencial de aliviar financeiramente o professorado do país sob a crença ilusória de que tal contribuiria para fazer com que mais pessoas se interessassem pelo magistério. Não. São suas implicações normativas e, por que não, pedagógicas que me convencem a adotar uma posição contrária a sua aprovação como Lei. Além de uma flagrante inconstitucionalidade, criar “privilégios tributários” significa institucionalizar um tratamento diferencial para uma categoria de profissionais. Como se esta constituísse uma casta exemplar diante das demais no sentido de que ela possui o “privilégio” de se abster da indispensável contribuição tributária que as demais irremediavelmente devem arcar e realizar para viabilizar e sustentar o sistema público. Afinal, qual razão jurídica justificaria o fato de professores serem isentos de imposto sobre remuneração, e outras categorias não? Por que professores, e não operários, enfermeiros, assistente sociais, contadores? O simples pertencimento a uma categoria profissional particular não constitui razão suficiente para lhe atribuir exceções.
Desse modo, temos uma situação de injustiça, conforme a concepção pluralista defendida pelo filósofo Michael Walzer, segunda a qual o acesso a um dado bem social não pode ser determinada por um privilégio específico, fruto de uma vantagem exterior a esfera desse bem em menção e disputa; como, por exemplo, o acesso às melhores oportunidades educacionais definida pelo status socioeconômico dos candidatos e não pelas capacidades meritocráticas. No caso do projeto, a Isenção do Imposto de Renda (Bem social) definida pelo tipo de profissão (Esfera Social). Numa sociedade já profundamente desigual e hierárquica, caracterizada pelos privilégios de uns poucos e pelas “carteiradas” no cotidiano, o que precisamos é justamente de consensos que afirmem e efetivem maior isonomia e igualdade, e não de mais formas diferenciais de tratamento.
Ao ímpeto antirrepublicano soma-se ainda o sentido deseducador que, a meu ver, o projeto proporciona em relação à noção de imposto. Isto é, esvazia-o do sentido comunitário e civilizatório que ele possui ou, ao menos, deveria possuir. Os impostos não são, como se pensa costumeiramente, apenas uma forma de extorsão estatal da riqueza produzida pelos indivíduos. Isso é um reducionismo bastante pobre, muito embora quando a contrapartida do Estado se dá na forma de serviços ineficientes e precários a sensação seja plausível. Os impostos criam um senso de coletividade e de pertencimento comunitário ao vincular o indivíduo e seus esforços à aspirações de bens comuns e coletivos, que, como tais, para poderem ser usufruídos e compartilhados pelos membros de um grupo devem ser custeados, não exatamente na mesma proporção, por todos. Ou seja, do resultado da contribuição de cada indivíduo particular que, somadas, podem oferecer serviços e bens que, individualmente, muitos não teriam condições de acessar e desfrutar. É desse modo, mediante impostos e tributos, que se constrói uma comunidade e uma vida pública de bens, serviços e significados comuns.
A isenção despropositada elimina esse sentido cívico de justiça e de pertencimento comunitário. Os impostos são o preço que se paga para se viver em uma sociedade mais justa e coesa. Como os professores poderão, então, defender uma sociedade mais justa, igualitária e harmônica se eles mesmos são dispensados de sua parcela de contribuição tributária no Imposto de Renda? Como poderão defender a igualdade, criticar abusos e injustiças, se são eles mesmos tratados com privilégios estatutários e tratamento diferencial? Há uma contradição que deslegitima, de partida, as pretensões pedagógicas dos docentes e o seu papel civilizatório para formar uma sociedade mais racional e democrática.
Professores precisam de dignidade, reconhecimento e investimentos consistentes e estruturais na sua profissão, desde a sua formação, condições de trabalho, carreira e remuneração, não de tratamento diferenciados e paliativos bem intencionados. Incentivos e subsídios paliativos são apenas mais uma forma de continuar adiando e não enfrentando o problema da educação com a seriedade e urgência que ele necessita.
_______________________________________________________________
Para maiores detalhes da PL 2607/2011: http://www.camara.gov.br/sileg/integras/940613.pdf