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Eduardo de Jesus e Verônica Bolina: Retratos da Reificação como Esquecimento da Humanidade

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 A propósito da morte de Eduardo de Jesus, 10 anos, por um policial militar do Batalhão de Choque em incursão policial na Complexo de favelas do Alemão, localizada na Zona Norte do RJ (em 2 de abril) e do espancamento e tortura da travesti Verônica Bolina (em 12 de abril) também por policiais e agentes penitenciários, gostaria de ressaltar a tecnologia de poder comum aos dois casos bárbaros de violação de direitos humanos no Brasil.   Verônica Bolina

Na situação de fragilidade institucional ou mesmo de nulidade prática das “técnicas de normalização” (educação escolar, exames médico-legais, psiquiátricos, psicológicos, sócio-assistenciais etc.) e da bestialização da esfera pública (programas de jornalismo policial, editoriais de jornalistas contra a validade de princípios dos direitos humanos), no Brasil  assistimos à circulação cotidiana de diferentes regimes policiais de técnicas de punição e de exceção (física e psicológica), das quais a “tortura” e o “extermínio” são exemplos específicos – mas não “extraordinários”, ao contrário, constituem os elementos dos rituais ordinários de violência policial nas ruas e nos sistemas prisionais.

Não obstante, é preciso considerar quem são os alvos preferenciais das técnicas de punição policial cotidiana. Identificados por diferentes etiquetas sociais – negros, índios, gays, prostitutas, travestis, transexuais, moradores de rua, mendigos, favelados etc. – todos poderiam ser situados no mesmo estatuto de “Homo Sacer dos Tristes Trópicos”. Enquanto em sociedades que compartilham a adesão generalizada à sacralidade da pessoa humana, aqueles fora da “norma” seriam enxergados como humanos “outsiders”, “subversivos” ou corpos “insubordinados”, no Brasil, os “fora da norma” são também despossuídos de humanidade.

Aqui não seria simplesmente o “estigma” ou o “preconceito” que explicariam a experiência de desrespeito e violação corporal contra o outro. Nos casos acima relatados é a “humanidade” que lhe é retirada. Rasgada como se rasga a uma “roupa” que se usa, a humanidade não cobre mais a sua “vida” que tornou-se “nua”. Esta vida nua não é de modo algum a queda à condição de “pura” animalidade, pois paradoxalmente em nosso admirável mundo novo brasileiro, animais pode sim ser portadores de dignidade universal. Diferentemente, em nossa sociedade do “Estado Anti-Social” a dignidade é uma categoria moral da esfera do particular. Nestes tristes trópicos alguns seres humanos são dignos, outros não. Alguns podem ser “humanos”, outros não.

Nessa particularização seletiva da condição humana, deve se acrescentar as formas de transfiguração e suspensão da humanidade. Sobre isso, as práticas policiais e judiciais de exceção no Brasil são exemplares da norma (que) se aplica à exceção desaplicando-se, retirando-se desta. Mais, nessa “relação de exceção” policial não é apenas a norma que se suspende, mas a sacralidade da humanidade, transfigurando o trato “civilizado” da alteridade em trato “selvagem” da alteridade (torturar, matar ou deixar morrer).

Finalmente, é nessa engrenagem do grotesco policial-punitivo que a “reificação” como “forma do esquecimento do reconhecimento (elementar)” deve ser melhor compreendida. Na suspensão da humanidade do Outro (Jesus e Verônica Bolina) como efeito de poder da técnica de exceção policial, resta a “coisa” despida de quaisquer características humanas. Com efeito, a tradução barbarizada do poder de vida e morte sobre a “coisa” (corpos matáveis) é a também reificação da vida nos espetáculos midiáticos dos números: “Brasil mata 28 jovens por dia”, “duas a cada três vítimas de homicídios são negras”, “epidemia de jovens negros e pobres no Brasil”, “Brasil foi responsável por 44% das mortes de LGBTs em todo o mundo”.

Nos casos de violação policial da integridade corporal dos destituídos de humanidade, não é somente a confiança do violentado que é ferida de morte, mas também nossa cultura de sensibilidade diante do sofrimento do outro. Nessa relação de exceção não há mais assento para a metáfora hegeliana da dialética entre senhor e escravo. Enquanto na metáfora hegeliana, a humanidade intersubjetiva é o pressuposto do aprendizado moral, na relação de exceção a “desumanidade” é o pressuposto de dupla reificação: o esquecimento da humanidade do outro e o esquecimento da própria humanidade.