07 de abril, Dilma Rousseff lançou o Humaniza Redes. Basicamente, um programa de combate a crimes virtuais, além de promover um ambiente virtual mais seguro para os navegantes. Não vou me deter no mimimi gerado por uma parcela de usuários que se sentiram afetados com a medida, taxando-a de cerceamento à liberdade de expressão. Quem quiser que dê ibope pra essa galera, porque aqui não tem lugar pra coitadismo. Existe um problema que precede a decisão de promover mecanismos de combate a crimes na internet: a realidade do virtual. Dependendo de como o problema é abordado, muda também o combate e a criação desses mesmos mecanismos.
Antes disso, permitam que eu narre brevemente minha experiência com a internet. Descobri essa coisa maravilhosa há 13 anos, quando comecei o ensino médio no CEFET. Como muitos indivíduos de minha idade, passei pelo fascínio de mergulhar e futricar coisas variadas no ciberespaço; jogava, criava contas de e-mail, via sites de humor (ah, saudoso Humortadela)… Aproveitava também a net como ferramenta de pesquisa e de estudo, tanto para os trabalhos escolares quanto para autodidatismo. Não demorou muito a passar o dia por lá. Considerando o ambiente de navegação, você pode adivinhar alguns impedimentos óbvios: nada de jogar ou bater papo no mIRC ou MSN. Eu mesmo só descobri o bate-papo em 2004, já no último ano do ensino médio. Qualquer que fosse a tarefa, algo era certo: sempre tive um envolvimento enorme com a internet, pro melhor e pro pior.
O tempo foi passando, e fui mergulhando cada vez mais. Boa parte de minha atividade acadêmica foi catalisada pela rede. Nesse sentido, uma de minhas maiores descobertas no campo da filosofia foi entrar em contato com autores como Pierre Lévy e Luciano Floridi. Até me arrisquei a falar sobre a possibilidade de uma ética na net em uma palestra, em 2009. Em 2011, houve uma virada em meu pensamento: de uma atitude otimista e progressista com relação à rede, passei a ter um olhar mais criterioso (e pro vezes sombrio) sobre a liberdade de expressão na internet ao ler um livrinho mágico, ainda sem tradução para o português: “The net delusion: the dark side of internet freedom” (algo como “O engano em rede: o lado sombrio da liberdade na internet”, sei lá), de Evgeny Morozov. Com o passar do tempo, fui me afastando da temática, mas ler esses caras me ajudou a aumentar cada vez mais o cuidado com as atividades que desenvolvo dentro dela.
Pois bem: vamos retornar ao tempo presente. Consideremos um trecho da fala da presidenta. Confesso que ainda não vi a declaração na íntegra, mas acredito que esse trecho, mesmo isolado, é bastante sugestivo para os propósitos deste texto: “Como extensão de nossa vida real, o mundo virtual da internet deveria ser regido por regras éticas, comportamentais e de civilidade”. Nessa declaração concisa se concentra toda uma atitude para com a internet. Essa atitude, basicamente, consiste em dividir entre um mundo dentro da internet (1) – o virtual – e outro fora dele – o real. Ou, nas palavras de Floridi (não lembro em qual texto, desculpem), entre uma dimensão “online” (dentro da net) e “onlife” (fora dela). O importante aqui não é a divisão em si, mas o caráter estanque que ela assume. Pensemos, por exemplo, quando uma pessoa afirma que prefere paquerar ao vivo do que num bate-papo porque é mais “real”, ao mesmo tempo que recrimina práticas como o sexo virtual por não afetar todos os sentidos (sobretudo os sentidos proximais – tato, olfato e paladar). Existem nuances, é claro, e aparentemente pessoas como a de meu exemplo diminuem em número a cada dia que passa; mas consideremos outras coisas, desde debates em redes sociais até a educação a distância que seja realizada via internet. Em maior ou menor grau, muitas pessoas ainda se valem da distinção acima traçada.
É aí que a porca torce o rabo. Tão fácil definir o real em termos de uma percepção dos sentidos, né? Se for por isso, deveríamos dizer que cegos e surdos viveriam em um mundo “virtual” por estarem privados da visão ou audição. Sem contar nos próprios problemas que a internet amplia: racismo, LGBTfobia, classismo, machismo… Vai lá dizer pra Fran que o vídeo que o ex-namorado dela vazou deles transando não é real. Vai lá dizer pra Daniela Andrade ou Samie Carvalho que elas não deveriam se preocupar com as mensagens transfóbicas que deixam no Face delas. Eu já entrei em saia justa no Orkut por causa de um “concurso” que bolei sem consentimento de várias garotas e me senti mal pra caramba com os desdobramentos REAIS do que fiz, ora! Quer dizer, nada mais equivocado. Dizer que a internet não é real é como dizer que o sonho não é real. Que não é real o que uma pessoa vê quando tá chapada de ácido ou birita. Que eu deveria deixar pra me estressar pessoalmente em um debate, em vez de gastar meus dedos respondendo a comentários inoportunos em minhas postagens, porque esses debates não valem a pena – afinal de contas, são feitos na net, e a net é um espaço virtual. Como o real é diferente do virtual, então é tempo perdido. Obrigado por pensar assim: os mimizentos do início da postagem, os trolls, os inflamadores de debates só têm a agradecer por sua negligência.
A internet não é uma extensão da vida real. Não é um implante. Não é sequer um meio de comunicação. A internet é um pedaço da realidade – ou, se preferir, é a própria realidade em outra dimensão; e a experiência que temos dentro dela é tão real quanto a que temos sonhando ou nos chapando (2). A virtualidade que permeia a internet não é apenas real; ela está presente em tudo que conhecemos. A árvore está virtualmente presente na semente, da mesma forma que uma folha de papel ou uma mesa. Virtual, como explicou Lévy, é aquilo que existe em potência e não em ato. Depende de cada um e de todos nós plantar uma semente num terreno próprio, mas não dá pra saber precisamente como vai ser a árvore que vai brotar dela – se frondosa ou mirrada, frágil ou firme. Depende de cada um e de todos nós adotar valores determinados, dentro e fora da internet – mas não podemos saber como vamos interagir efetivamente a não ser na interação propriamente dita.
Portanto, o Humaniza Redes deve, se deseja obter o sucesso almejado, questionar a declaração da presidenta Dilma. Promover pedofilia, racismo, LGBTfobia e outros crimes no mundo virtual é tão real quanto no mundo dito real. O mesmo vale pra qualquer forma de opressão – e, por conseguinte, pra qualquer luta emancipatória, ou mesmo pra pagar as contas do banco. O que não dá é pretender viver em apenas um pedacinho da realidade, criando uma namorada no Second Life ou vivendo como um ermitão no meio do mato, como se todo o resto não importasse. Só aceito extensão se tiver filtro de linha.
(1) Estou falando da internet, mas o raciocínio serve pra qualquer rede de dispositivos eletrônicos conectados entre si, ou mesmo para um ambiente isolado em um dispositivo (jogos, ferramentas de aprendizado eletrônico, simuladores e assim por diante).
(2) Fala a pessoa que nunca tomou um doce na vida. Nem pretende.