“esta cidade onde o ar tem asma
e ninguém consegue dormir
me tira as palavras
e me obriga a falar
o que nunca quis que saísse de mim
para não sufocar-se com os sonhos” (Rodrigo Sérvulo, Diário de âncoras).
Como é sabido, os poetas aprendem com os espantos. Os versos, transformados então em necessidade irrefreável de nossa vontade, são respostas escritas e cantadas das sensações intelectuais e emocionais súbitas deflagradas pelo espanto. Diário de âncoras (Editora Tribo), livro de poemas de Rodrigo Sérvulo, que por um tempo valioso nos brindou na Carta Potiguar com os seus sugestivos textos, compartilha conosco os seus espantos, desejando, também, fazê-los nossos. E se estamos falando de espantos, que lugar pode ser, simultaneamente, para usar uma palavra adequada ao contexto a que nos referiremos, mais propício e adverso para produzir espantos do que a cidade, e a vida mental que a caracteriza? Estamos diante de um livro que, assim como a cidade, apresenta diversos caminhos para que o leitor possa percorrer ao longo da sua leitura o itinerário para os espantos e espasmos urbanos que vivemos, respiramos, desejamos e renegamos sem, muitas vezes, darmos a devida relevância. Sérvulo sabe bem que só há espanto se houver estranhamento. Diário de âncoras nos convida para reaprender a estranhar a cidade, seus tipos, suas rotinas, seus ritmos, seus afetos. Cultivar o espanto.
Não seria exagero afirmar que os versos que se desenrolam nas páginas de Diário de Âncoras são uma verdadeira educação dos sentidos urbanos. Assim como a cidade em suas diversas situações e usos, o livro convoca do leitor um exercitar da atenção, dos olhos, do olfato, das mãos. Dizer que o livro de Rodrigo Sérvulo é um livro de poesias sobre a cidade, sobre este universo social e geográfico, a um só tempo, tão conturbado e familiar a nós, urbanitas do século XXI, não é dizer grande coisa. Este é um livro que mais do que contar sobre a cidade e suas trepidações emocionais, passeia por ela com os seus passos-versos, ora de maneira mais pausada ora mais ligeira, parando, por vezes, nesta ou naquela esquina, rua, viela, cruzamento. A poesia aqui não está de frente para a cidade, contemplando-a e descrevendo, de fora , sua vertigem e seu pânico anônimo. A poesia de Sérvulo escolhe esposar a cidade por sua geografia de meandros enraizados e afetos sulforosos. Seus versos parecem espiar a realidade em meio ao burburinho das vozes e dos solavancos da indiferença civil dos transeuntes. Versos que também cheiram, que se esfumaçam e escorrem ao longo das linhas e das páginas, mas que, curiosamente, como a fuligem e a urina nas paredes e pavimentos da cidade, se impregnam e adensam o ar em volta.
Temos aqui Rodrigo Sérvulo como poeta. Ele é também publicitário, produtor cultural, cientista social, escritor e…, claro, “pinta natalense”. Na verdade, esses são os heterônimos da vida real. São ficções fingidas competentemente (“O poeta é um fingidor!”) que Rodrigo inventa para jogar um jogo de nomes e profissões para expressar, assim, sua criatividade pelos mais diversos meios e públicos. Quase vejo seu riso sardônico ao ler este parágrafo…
A energia poética do seu livro radica na capacidade sintética dos seus versos para apreender a orgia de vitalidade e os êxtases febris e transitórios que caracterizam a cidade e as subjetividades urbanas constantemente excitadas. Porém, há mais em Diário de Âncoras do que simplesmente recolher e traduzir em palavras e versos imagens e cenas da cidade. É um diário do cotidiano, certamente, mas não simplesmente um diário de impressões furtivas e instantâneas para serem saboreadas hedonística e egoisticamente. Os versos, sobretudo na primeira parte do livro, carregam bem mais do que impressões cotidianas da vida urbana, pois, como é dito, “Mais profunda é a Cidade”. Desfrutamos no livro o talento do autor em criar fórmulas poéticas de pensamento, isto é, estabelecer relações, sintomas, causas e implicações existenciais e culturais da vida mental, social e erótica urbana por meio de versos que traduzem sentimentos, desejos e conceitos de pensamento. Nos versos de Sérvulo, a cidade não é apenas experimentada pelos humores, espantos e afetos que ela causa, ela é, também, pensada e imaginada por fórmulas conceituais que expressam conceitos filosóficos e sociológicos de fundo, fruto de sua formação e leitura em filosofia, literatura e ciências sociais. Carne e espírito. No compasso das poesias, além de Fernando Pessoa e Rimbaud, deixa-se entrever, com acenos generosos, Nietzsche, Gilles Deleuze, Gabriel Tarde, Georg Simmel, entre outros.
Como leitor, a sensação que me transmite Diário de âncoras é que ele é feito de deambulações escritas, andanças poéticas sem rumo planejado ou lugar de destino. É um livro para se ler nos ônibus, nas paradas, nas filas dos bancos, nas praças, e depois abandonado nos cruzamentos e nas passarelas. Seu único objetivo parece não ser outro senão nos arremessar para dentro das realidades escancaradas das metrópoles e da agitação dos sentimentos de seus anônimos, para que, com efeito, cada qual possa encontrar, com ardente paciência, os seus exílios particulares – “continuaremos o sonho de ninguém a viver como todos”. São eles as suas e as nossas âncoras. No exílio, carregamos nossas âncoras para onde quer que vamos, não importa onde. Com sua sensibilidade poética e sociológica, Sérvulo sabe que a cidade é feita de exílios e exilados, pois ela, a cidade e seus lugares, está quase sempre cheia. Os seus versos são, de uma só vez, um descortinar dos exílios e uma elegia sobre como habitar o caos com lucidez, desejo e humor, arte citadina por excelência. Saber habitar o caos e inventar exílios reais e imaginários, com pessoas, lugares, livros ou consigo mesmo, eis as exigências que Sérvulo faz aos seus leitores para que estes ousem atravessar se perder na floresta das cidades.
“sou esta paisagem:
sol e sal nos olhos
chuva e ácido na língua
nuvens esparsas e latas queimadas
maré cheia de gentes
cardumes de desejos
dentro de minhas veias
desenho o vento
que falta na minha paisagem
de ser”.
O livro conta, ainda, com um gesto benjaminiano contra a “reprodutibilidade técnica” da obra de arte. Na tentativa de preservar a aura mística e singular que afeiçoa a obra de arte e da qual nos falava o filósofo e crítico literário Walter Benjamin em seu famoso ensaio, o projeto gráfico do livro nos presenteia com uma capa específica para cada um dos 500 exemplares da primeira tiragem. Assim, reforça-se o lado visual de Diário de âncoras, com suas ilustrações de Aureliano Meds e fotografias de Pedro Andrade, nos mostrando que a cidade fala e é falada por diversas línguas e linguagens. Afinal, a cidade é, antes de qualquer coisa, uma experiência visual que nos é impelida aos olhos da cara.
É uma enorme alegria ler e escrever sobre um livro de um amigo com quem partilho as mais variadas afinidades em matéria de música, livros, poesia, filosofia etc., com quem, ao longo desses anos, sempre que conversei, gargalhei junto ou li, pude encontrar algo de mim, isto é, algo em que me reconheço, admiro, desfruto, interesso-me, compartilho, porque quem somos sempre estar também, de algum modo, em outros, ou, nos versos de Rodrigo Sérvulo, “nossas vidas em outras vidas”.
Fica, então, para os nossos leitores o convite para a leitura do livro e para o comparecimento em seu lançamento que ocorrerá amanhã, dia 10/04, no Ateliê Bar e Petiscaria, Rua Chile, 39, Ribeira – antiga pizzaria Calígula. Os presentes serão ainda agraciados com o show da banda Mahmed.