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Junho de 2013, Março de 2015 e a anomia da esquerda

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liAs últimas manifestações contra o governo Dilma suscitam questões importantes para se pensar e reformular politicamente. Elas colocam não apenas a presidente Dilma, o governo ou o Partido dos Trabalhadores (PT) em uma situação delicada e crucial, mas outros dois componentes imprescindíveis da vida política: o sentido da democracia para a sociedade brasileira e o papel da esquerda como alternativa – e esquerda aqui não se reduz aos partidos que assim se intitulam, engloba também sindicatos, movimentos sociais, intelectuais, etc..  O que temos assistido nos últimos tempos é um desgaste e deslegitimação progressiva de ambas, e isso, é importante reconhecer, não é fruto exclusivamente da ação ofensiva da direita, da oposição, dos setores conservadores ou da imprensa, ou qualquer grande “outro” que se queira colocar a culpa. As esquerdas, em especial o PT, possuem uma razoável parcela de responsabilidade quanto ao seu próprio desgaste e crescente descrédito junto à sociedade em geral e, pior ainda, junto aos setores mais progressistas que já estiveram ou que poderiam estar ao seu lado contribuindo.

A despeito das diferenças ideológicas, sociais e programáticas, as manifestações de 15 de Março guardam alguns pontos em comum com as Jornadas de Junho de 2013. Duas delas me interessam em particular para examinar a nossa situação política porque elas aportam problemas comuns, os quais a sociedade, o nosso sistema político e o pensamento crítico tem de irremediavelmente enfrentar.  Mais do que a comparação em si entre esses dois acontecimentos políticos, interesso-me pelas questões que, a meu ver, essas duas grandes manifestações e movimentos de massa suscitam.

Em primeiro lugar, ambas as mobilizações procuraram se organizar e ocorreram, em parte, à margem das estruturas tradicionais de representação e ação coletiva (partidos, sindicatos e movimentos sociais tradicionais). Embora estes últimos estivessem presentes no tocante à organização, convocação, financiamento, etc., eles tiveram que lidar, numa relação nem sempre amistosa, com a emergência de novas organizações, grupos, coletivos, frentes, fóruns, midiativismos que também se colocaram como agentes de construção das mobilizações; de um lado, MPL, MídiaNinja, Fora do Eixo, #RevoltadoBusão, entre outros tantos, e, nas mobilizações anti-Dilma, o Vem pra Rua, MBL, Revoltados Online.

Assim, podemos constatar que o impulso de autoorganização e a crítica a um sistema político fechado sobre si mesmo, que marcou as Jornadas de Junho, espraiaram-se para além dos estratos e grupos assumidamente progressistas, sendo adotado e articulado por novos atores (profundamente insatisfeitos com o Governo e com os rumos do PT, e sua atuação política) alinhados mais à direita, seja esta mais liberal, conservadora, fascista ou simplesmente angariando pessoas desencantadas à procura de alguma alternativa ao Partido dos Trabalhadores. Ainda que ideologicamente homogêneo, é um erro subestimar a organicidade que está sendo construída, e construída também de baixo pra cima, pelos movimentos contra Dilma. Evidente que as motivações políticas e morais, os motes da crítica, o escopo da agenda de reivindicações e o grau de pluralismo ideológico são drasticamente diferentes. Porém, há um pano de fundo compartilhado que faz com que, em determinados aspectos, Junho de 2013 e Março de 2015 se toquem num mesmo vértice histórico: são respostas políticas diferentes motivadas por um mesmo sentimento de fundo, qual seja, a indignação contra um modelo político – e de atuação política – fechado sobre si mesmo, que, em nome da acomodação de interesses e da “governabilidade” não se importa em passar por cima e de se blindar contra os reais anseios, insatisfações e expectativas das pessoas e dos movimentos sociais que estão fora da esfera política instituída.

Em suma, o que está ocorrendo pouco a pouco é que as forças sociais organizadas das classes populares ascendentes e das classes médias estabelecidas, ou seja, Junho de 2013 e Março de 2015 estão confluindo para um mesmo ímpeto de rejeição e crítica ao petismo e à esquerda instituída.

E isso se deve, somado aos equívocos políticos do partido na lida com a crise econômica e a cada vez maior subserviência do PT ao PMDB, a maneira desastrada e inábil com que o PT e esquerda tradicional (presas ao velho esquema fazer política eleitoral-estudantil-sindical) lidaram com esses movimentos, oscilando entre o desejo de integração cooptadora e de desqualificação sumária muito mais do que a busca por uma compreensão efetiva e séria das motivações, insatisfações e desdobramentos das mobilizações e movimentos.

Em segundo lugar, e mais relevante para o debate, é que ambas as mobilizações colocam sobre si a responsabilidade e a aspiração de refundar a democracia sobre novos termos, ainda que seja para minimizá-la, suspendê-la ou anulá-la, o que é, frise-se, extremamente grave e preocupante. Portanto Junho de 2013 e Março de 2015, cada qual à sua maneira e segundo concepções distintas acerca da função da política, expressam seu descontentamento questionando a qualidade, a pertinência e a precariedade de nossa democracia para atender as expectativas sociais mais prementes da sociedade brasileira, isto é, serviços públicos de qualidade, estabilidade econômica, combate à corrupção e à desigualdade, segurança, etc..

Diante de tal quadro, o que podemos concluir é que a esquerda instituída parece ter abandonado, de uma só vez, a crítica dos rumos de nossa redemocratização e a indispensável disposição de criar novas propostas e mecanismos para resolver os impasses do sistema político atual e de seus velhos vícios clientelistas e patrimonialistas. Dito de outro modo, face às regras do jogo da política institucional, ela perdeu a capacidade de discordar e mostrar novos caminhos em matéria de políticas públicas e estratégia política. São os movimentos sociais recentes, bem ou mal, não cabe aqui juízo de valor, que estão tentando levar esta tarefa a cabo, contra a representação política, inclusive contra o PT e a própria esquerda em geral. É esse abandono da crítica como prática intelectual e social de contestação e inovação que está na raiz da cada vez maior resistência e suspeita que estratos da classe média mais educada e da juventude engajada brasileira mantêm com o PT e com a esquerda instituída dos partidos e sindicatos.

Deixar que esse vácuo da crítica do instituído e da redemocratização seja ocupado na esfera pública e na sociedade civil por grupos e organizações com inclinações autoritárias, elitistas e com enormes déficits de cultura democrática e de Direitos Humanos, e, com os quais é praticamente impossível dialogar, significa, nos ensina a história do século XX, pavimentar um caminho perigoso, propício à medidas excludentes e ao avanço de extremismos. Há mais: é a própria ideia da esquerda como alternativa que se esvanece no ar. A esquerda política como projeto alternativo, que, por um bom tempo, constituía um horizonte ético-político incontornável e, mais recentemente, tornou-se uma possibilidade consolidada com os avanços e bons resultados obtidos pelos primeiros governos do PT, acaba, desse modo, por cair em profundo descrédito. Numa sociedade ainda tão desigual como a brasileira, isso seria um verdadeiro desastre, um duríssimo e violento golpe nas aspirações por maior e efetiva igualdade e justiça social.

O que os movimentos e mobilizações dos últimos anos revelam, a meu ver, é que a esquerda tradicional perdeu o vigor intelectual e político para a crítica do instituído. Uma esquerda incapaz de criticar o instituído é uma esquerda que se divorciou das bases sociais, das ruas, dos sentimentos políticos pulsantes e concretos que brotam da experiência social do cotidiano e da organização autônoma das pessoas. Portanto, penso, estamos falando de uma esquerda que se nega a si mesma, posto que, ao invés de vitalizar a política e as instituições pelo aprofundamento democrático, quer dizer, pelo esforço em garantir a presença, a interação e participação da própria sociedade, sua ação política, pelo contrário, as desvitaliza na medida em que contribui para distanciar sociedade e estado. Desse modo, a sociedade deixa de ser sujeito da política para ser tão somente objeto de administração a partir de políticas formuladas a revelia de sua participação e expectativas.

Assim, essa esquerda, presa por demais aos espaços ortodoxos e à atuação política tradicional do instituído, está aprofundando o abismo entre ela e a sociedade civil. Para recuperar o vigor da crítica e da política, é preciso se religar novamente às potências instituintes, isto é, as lutas sociais e culturais de contestação que, no bojo dos acontecimentos, almejam irromper na ordem sociopolítica novos “possíveis históricos”, para usar o termo de Claude Lefort. Não se trata, de modo algum, de recusar a política institucional e, muito menos, as instituições democráticas. Trata-se sim, e fundamentalmente, de reconhecer sua legitimidade sem abrir mão das lutas sociais que visam empurrar ambas para além de sua configuração presente.  Esta é a grande lição e consequência das Jornadas de Junho e das manifestações de 15 de Março que, a um só tempo, pode ser aprendida e colocada contra os excessos e equívocos dos dois movimentos.  Uma lição capaz de suscitar consequências nefastas tanto quanto, por outro lado, um profundo aprendizado coletivo sem qual, atualmente, é impossível repensar e refundar as bases de nossa redemocratização, tarefa urgente que, lamentavelmente, a esquerda instituída parece ter deixado de lado.