Confira a segunda crônica da série #CraquesQueEuNãoViJogar.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira. Um nome tão forte e imponente que pode ser cantado como verso de música. Na perfeita descrição do jornalista José Trajano, era um cara alto, magro, barbudo, cabelo grande e olhar penetrante. Entre 1974 e 1989, numa fase do futebol em que o passe valia mais que o chute, o Doutor Sócrates desfilou sua inteligência em campo. Começou no Botafogo de Ribeirão Preto, onde foi artilheiro do campeonato paulista de 1976. Depois, vestindo o preto e branco do Corinthians ou as cores vivas da nossa bandeira, foi eleito pelo povo o jogador mais original da história do futebol. Mas esse craque eu não vi jogar.
Diziam ser uma loucura. Magro, alto e desengonçado. Pela manhã ficava preso às aulas na faculdade de Medicina e quando sobrava um tempo corria para o campo. No Botafogo teve dificuldades para continuar no futebol. Seu Raimundo Vieira, seu pai, exigia que ele priorizasse os estudos. E assim fez. Em entrevista em 2009, Sócrates afirmou que “o futebol apareceu no meio do caminho, atrapalhando os planos”. Ele se formou em medicina e por pouco seu Raimundo não nos privou de Sócrates.
No Corinthians, alimentou uma imagem rebelde. Tornou-se ídolo de umas das maiores e mais apaixonadas torcidas do mundo. Um ídolo moldado pela força do Corinthians. Até hoje mantém cadeira cativa nos corações dos verdadeiros admiradores do futebol bem jogado.
Em campo, era o cabeça pensante do time. Diziam ter o calcanhar mais milimétrico do futebol. Certa vez foi perguntado por que usava tanto o calcanhar. Ele disse ser um artifício para tornar seu jogo mais rápido. Sócrates nunca negou suas deficiências físicas. Quando atleta, procurava sempre o lado da sombra para jogar e se saísse correndo para comemorar um gol, era capaz de não aguentar. Além disso, tinha os pés pequenos demais para seu corpo. Media 1,91 metros e calçava chuteiras 41. Os famosos pés de bailarina. Ele mesmo assumia: “se fosse receber a bola e girar para tocar, era capaz de cair sentado no chão”. O calcanhar era o que dava pra fazer.
Mas antes de ser o craque e ídolo admirado, Sócrates foi detestado e incompreendido. Relatos contam que seu perfil era totalmente inverso do que os corinthianos estavam acostumados. Na sua biografia, o autor Tom Cardoso diz que ele era “o avesso do avesso do avesso”. O Doutor era frio e não tinha papas na língua. Era mesmo diferente de todos. Ele não era um personagem alienado como a grande maioria dos jogadores. Por muito tempo foi crucificado por não comemorar os gols subindo no alambrado, ao lado da torcida. Mas ele tinha sua forma de extravasar. Comemorava os gols com o braço em riste e o punho cerrado – saudação socialista – porque queria mostrar pro mundo que era um representante do povo.
Mas nada que 172 gols em 297 jogos disputados pudessem desfazer. Rapidamente Sócrates virou ídolo da Fiel. Dono da camisa 8, foi campeão paulista em 79, 82 e 83 e líder da “Democracia Corinthiana”, movimento que alterou a relação entre jogadores e diretoria em uma época de transição entre ditadura e democracia, em que os brasileiros não elegiam sequer o presidente da República.
Sua personalidade forte e diferente incomodava. Sócrates não era de aturar as imposições vindas de cima. No Timão, já formado em medicina, ameaçou abandonar a carreira diversas vezes. Em 1987, após uma temporada mal sucedida na Fiorentina da Itália, voltou ao Brasil para jogar ao lado de Zico no Flamengo. Após alguns poucos jogos e desentendimentos com o treinador Sebastião Lazaroni, decidiu jogar, literalmente, suas chuteiras no cesto de lixo. No dia seguinte iniciou sua residência universitária no Hospital do Fundão, no Rio. Passou um bom tempo afastado dos gramados, até decidir voltar a atuar pelo Santos. Ah, como eu queria ter visto o Doutor jogar, nem que fosse pelo fraco time de médicos e residentes do Hospital do Fundão.
Em uma das muitas entrevistas, o Doutor afirmou que os principais gols de sua vida nada têm a ver com o futebol. Em 1984, ele vestiu a camisa brasileira por um título maior do que qualquer Copa do Mundo. Foi um dos grandes aliados do povo na campanha das Diretas Já, que lutava pela redemocratização do país através do voto direto para Presidente. Sobre a Democracia Corinthiana, Sócrates disse ter sido o grande evento da sua vida profissional. “O resto é chutar bola”. E eu aqui lamentando não o ter visto chutar bola.
Difícil imaginar, mas relatos confirmam que o assunto mais discutido no vestiário do Corinthians entre os anos de 82 e 84 era política. Mesmo afirmando que não tinha intenção de ser candidatar a cargos políticos – ele brincava que havia sido eleito pelo povo para um mandato eterno – Sócrates enfrentava tudo e a todos para defender suas causas. E se o adversário formasse o melhor time do mundo para seduzí-lo, ele estaria do lado de Wlademir, Casagrande, Zenon e das causas do povo. Para ele, ser campeão era apenas um detalhe. Ele queria mais do que isso. Queria um Brasil sem desigualdade social.
O jornalista Rogério Micheletti disse: “Sócrates significou conteúdo, política, cultura e classe, mesmo sendo ídolo do povão”. Sócrates não era apenas mais um craque que eu não vi jogar, era alguém que tinha efetivamente algo para falar. Sócrates era pauta principal. Com ele em campo, o futebol era apenas o pano de fundo.
Na Seleção Brasileira, o Magrão – como era chamado pelos amigos – foi capitão na disputa de duas Copas. Em 1982, na Espanha, ao lado de grandes jogadores como Toninho Cerezo, Falcão, Júnior Capacete e Zico, formou um dos melhores times da história do futebol mundial. Um time moldado pela inteligência de Sócrates. Na época, o treinador era Telê Santana, a quem Sócrates nutria um sentimento quase paterno. Sua biografia explica que existia uma relação de respeito entre eles. O Doutor estava voando. Telê o fez abdicar temporariamente de muitos dos seus vícios. Dizem que foi a única vez que ele foi realmente um atleta. O desfecho dessa história todos conhecem. Mesmo apresentando um grande futebol, o Brasil acabou eliminado pela Itália de Paolo Rossi. Mesmo assim, Sócrates foi um dos destaques da competição. Já em 1986, no México, novamente com a confiança do mestre Telê. O Brasil caiu para a França de Michel Platini. Sócrates foi protagonista – assim como Zico – na decisão por penalidades, ao perder um dos pênaltis.
Só que Sócrates não era só futebol. Nessa mesma Copa, nosso craque mostrou ao mundo o potencial da linguagem futebolística. A cada jogo ele entrava em campo com uma faixa na cabeça. Foi a forma que o jogador encontrou de manifestar suas preocupações. Umas das faixas trazia dizeres de apoio ao México, que sofria com os efeitos de um terremoto. Nas outras, exibia palavras contra a fome, as guerras, o racismo e o imperialismo. Se eu pudesse entrar em campo nesse momento, entraria com uma faixa com os dizeres “Volta, Doutor”.
Os anos 80 foram realmente os anos do nosso craque. Sócrates foi craque, produtor teatral, ator, cantor, médico, jornalista, escritor. Escrevia tão bem que era capaz de fazer de um tiro de meta um lance emotivo. Certa vez apareceu na capa capa da revista Placar vestido com roupas de imperador. Era a reencarnação de D. Pedro I. Era o nosso representante, o protagonista do povo. Mas ele recusava o papel de protagonista. Só que na minha seleção de craques que eu não vi jogar, ele sempre foi estrela.
Uma estrela como Garrincha, a nossa Estrela Solitária das Copas de 1958 e 1962. Aliás, o Doutor cultivava vícios parecidos com os do passarinho cantador de Pau Grande. Em 1974, ainda em Ribeirão, mandavam buscá-lo na faculdade para poder treinar. Fumava trinta cigarros e tomava vários copos de cerveja por dia. Muitos anos depois da carreira encerrada, já sentindo os efeitos dos vícios, Sócrates assumiu ter feito escolhas erradas em sua vida. Era inadmissível, alguém como ele, formado em medicina, acreditar que a cerveja tinha o poder de hidratação.
No ano de 2011, os sintomas da cirrose provocada pelo consumo excessivo de álcool se agravaram. Aos 57 anos, Sócrates precisou de três internações para conter hemorragias digestivas. Na última, não resistiu. Faleceu na madrugada do domingo (4 de dezembro) no Hospital Albert Einstein, em São Paulo. Morreu em decorrência de uma infecção generalizada. Como escreveu um torcedor anônimo, “Telê Santana é um danado. Só escolhe os bons. E convocou o Sócrates mais uma vez”. O Doutor foi brilhar no time do céu.
E quiseram os Deuses do Futebol que o Doutor morresse em dia de final para o Corinthians. Morreu num dia feliz pra ninguém ficar triste. Exatamente no dia em que seu time do coração conquistaria seu quinto título brasileiro após um empate por 0 a 0 diante do Palmeiras. Quase 40 mil torcedores estavam presentes chorando a partida precoce de um ídolo. A imagem do estádio inteiro de braços levantados e punhos cerrados gritando “é, Sócrates” emociona até quem não o viu jogar. Queria eu que todos estivessem com a camisa 8 do Doutor, brindando com cerveja sua despedida no meio do campo do Pacaembu. Ele também queria que fosse assim. Devia existir um clássico sem fim para Sócrates.
Mas a sua história nesse plano nunca terá fim. Ele veio ao mundo para mexer com esse país. Conseguiu deixar uma bela mensagem. Sócrates Brasileiro já está eternamente dentro dos nossos corações. Foi um campeão da cidadania, como disse a Presidente Dilma Rousseff. Ele honrou o sobrenome que carregou, nos ensinou a sermos mais brasileiros. De jaleco branco, uniforme tricolor, alvinegro, de preto ou branco, amarelo ou azul, sempre foi craque. O futebol perdeu um grande jogador e o mundo perdeu uma cabeça pensante.
Magrão, você tinha razão. Seu mandato é eterno. O povo te elegeu como nosso representante dos campos. Eu tenho certeza que, lá de cima, no time do céu, você ainda alimenta seu desejo de ver o nosso Brasil mais justo e sem desigualdade social.