Os manuais de comportamento ético no jornalismo apontam algumas questões interessantes. O Artigo 11 do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, por exemplo, preconiza:
Art. 11. O jornalista não pode divulgar informações:
(…)
III – obtidas de maneira inadequada, por exemplo, com o uso de identidades falsas, câmeras escondidas ou microfones ocultos, salvo em casos de incontestável interesse público e quando esgotadas todas as outras possibilidades de apuração;
Em outras palavras, o uso de subterfúgios como esses é possível ao jornalista apenas em último caso. E, mais importante, no caso de questão de “incontestável interesse público”.
Não me parece difícil concluir que uma suposta festa de aniversário de um sobrinho do presidente Lula, já devidamente desmentida, não representa caso de “incontestável interesse público”.
A ação do jornalista Ulisses Campbell, a serviço da revista Veja esta semana, assediando a família do irmão de Lula, Frei Chico, passa longe de ser jornalística. É criminosa.
O grave, no entanto, de tudo isso é que uma vez que nossa profissão não possui um Conselho que estabeleça parâmetros para o exercício profissional e possa punir os que deturpem os princípios éticos preconizados em nossos códigos deontológicos, a infração ao código de ética não provoca, na prática, nenhuma sanção real contra um jornalista.
A tentativa de construção de uma proposta de Conselho feita pela FENAJ, ainda no governo Lula, foi desqualificada pela mídia como censura – ainda que seja muito difícil encontrar um vínculo causal entre a existência de um Conselho e uma ação censora.
Leia a seguir o texto que Conceição Lemes publicou no Vi o Mundo sobre mais um crime da Veja.
Nessa quarta-feira 25, a família de Frei Chico, irmão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, registrou um boletim de ocorrência contra o repórter Ulisses Campbell, da revista Veja, que durante três dias assediou-os.
“Foi um horror”, contou-me a sempre serena Ivenis, esposa de José Ferreira da Silva, o Frei Chico, como é conhecido desde os tempos de metalúrgico em São Caetano do Sul, no ABC Paulista, há quarenta anos.
Ulisses Campbell veio de Brasília para São Paulo especialmente para isso.
Primeiro, ele foi atrás do próprio Frei Chico, que relembrou a esta repórter:
– Na segunda-feira (23 de fevereiro), ele ligou para a minha casa, dizendo que era Pedro, do Instituto Lula. Quando a minha neta me levou o telefone, ele, de repente, começou a especular sobre a família, nomes de sobrinhos e netos de Lula, a fazer perguntas sobre o meu neto Thiago…
– Cara, o que você está querendo mesmo?
– Eu estou fazendo um mapa da família do Lula, um histórico…
– Mas para que instituto você está fazendo isso?
– Pro Instituto da USP…
– Na hora, pensei: “Acabou de mentir pela segunda vez”.
– Aí, ele acabou se identificando como Ulisses, da revista Veja. Disse que estava em busca de informações da festa de aniversário. Eu disse que não tinha festa nenhuma.
– Depois, esse cara me aparece em São Caetano… Tentou fazer com que um jornalista antigo, conhecido meu há mais de 40 anos, me convencesse a dar entrevista a ele. O que eu vou falar para esse rapaz depois do que ele fez? Não dei entrevista, claro!
Na terça-feira, Ulisses foi atrás de Denis, um dos filhos do Frei Chico, que mora em Sorocaba:
– Ele ligou para o celular da minha nora, se fazendo passar por Pedro, de Brasília, representante do Buffet Aeropark… Queria saber onde deveria fazer a entrega dos presentes. Minha nora disse que não tinha nada de festa, de aniversário…Meu filho ligou pro buffett, perguntou se lá trabalhava uma pessoa chamada Pedro, disseram que não tinha nenhum funcionário com o nome de Pedro.
Na quarta-feira, usando identidade falsa na portaria do condomínio, foi até a casa do filho do Frei Chico, dizendo que iria entregar um livro.
– Como ele não entregou livro nenhum e começou a fazer perguntas sobre a família, a babá fechou a porta e chamou a polícia. Aí, ele fugiu.
– O Denis conversou com ele por telefone. Ele disse duas vezes : “Se você não me der as informações que eu quero, vou publicar o eu que quiser”.
– Para intimidar ainda mais, mandou uma mensagem para o celular do meu filho com a foto da minha nora e do meu neto… Disse que iria publicar na próxima edição da revista Veja
Lá atrás Frei Chico foi do Partido Comunista Brasileiro (PCB), o Partidão. É sangue bom. Tranquilo. Conciliador. Sempre rindo. Sua risada é reconhecida de longe.Só que essa história deixou-o preocupado.
Viomundo – O que acha do comportamento desse jornalista?
Frei Chico — A pessoa que age dessa forma é tão baixa… Ele agiu como um bandido. A ética jornalística está indo para o ralo. Isso é caso de polícia. Ele cometeu vários crimes ao mesmo tempo.
Viomundo – Na época da ditadura, você foi preso, torturado, teve companheiros mortos. Lembra de ter tido contato com um jornalista que teve a postura do Ulisses Campbell?
Frei Chico – Não, porque quem fazia isso era a polícia. Esse momento político que nós estamos passando me lembra muito a perseguição aos comunistas, à esquerda em geral na época da ditadura.
Sinceramente estou muito angustiado. A grande mídia julga e condena a pessoa ao mesmo tempo. Ela estampa a tua foto no jornal, na revista, na TV, como se você fosse bandido, [como se] tivesse culpa por algum malfeito. Depois, vai se investigar e não aconteceu nada daquilo. Só que com aquela matéria a pessoa já foi condenada. E Justiça brasileira ainda é muito lenta, para punir esse tipo de jornalismo que também desinforma,deseduca, fere a dignidade humana.
Viomundo – O que a sociedade tem de fazer?
Frei Chico – Um grande esforço para manter a dignidade humana. Como eu já disse antes, eu estou muito angustiado. Parece, por exemplo, que piorou o tratamento da mídia às causas nacionais. A gente não vê a grande imprensa defender as empresas nacionais, mesmo que sejam grupos privados.
Em outros países, até onde sei, se acontece algo errado numa empresa, você pune os responsáveis e salva a empresa. Aqui é o contrário. A gente vai destruindo tudo o que é nacional como se fosse algo banal, beneficiando as empresas estrangeiras, o capital internacional.
Viomundo – Entreguismo?
Frei Chico — Entreguismo, sim. Faz parte de um projeto geopolítico muito mais amplo. O que eu vejo é uma política de desgaste das indústrias e dos projetos nacionais. E a grande mídia tem imensa responsabilidade nisso. Nós temos de reagir a isso.