Por Berenice Bento
(Socióloga e Professora da UFRN)
Um dos efeitos das políticas de cotas para as pessoas negras nas universidades foi produção de discursos sobre raça e exclusão social, como poucas vezes se observou em nossa história. Em uma conversa com uma amiga antropóloga que se negava a concordar com políticas públicas baseadas na noção de raça, eu lhe perguntei: então, você também é contra as políticas para as mulheres? E ela, como feminista combativa que é, me respondeu, claro que não. Quais as relações entre gênero e raça? Não seria uma contradição negar políticas públicas para os/as negros/negros e concordar com políticas para as mulheres?
Um raciocínio corriqueiro: É claro que a mulher é diferente do homem e por esta diferença foi excluída. Daí ser necessário fazer políticas reparadoras e específicas para as mulheres. Estes argumentos esquecem que a invenção do dimorfismo e a produção do feminino como portador de uma diferença inferiorizada em relação ao homem, esteve assentada no pressuposto (dito de base científica) de que mulheres e homens são naturalmente diferentes. Portanto, a construção assimétrica e hierárquica dos corpos na ordem binária do gênero compõe o dispositivo discursivo do chamado “determinismo biológico”. A tríade que sustenta este dispositivo é a raça, o gênero e a sexualidade. As relações entre gênero/sexualidade e sexualidade/raça têm pontos semelhantes com a discussão que farei aqui, mas têm especificidades que merecem uma reflexão que ficarão para outro momento.
Pegando carona no argumento que diz que as cotas para negros/negras teriam como efeito reificar a raça, num movimento tautológico, eu pergunto: políticas afirmativas para as mulheres não seria também uma forma de perpetuar a suposta diferença inferiorizada da mulher? Uma das respostas possíveis seria pensar que, embora não exista a diferença natural entre homens e mulheres, a construção social destas diferenças tem uma eficácia na produção de subjetividades fazendo que as mulheres e os homens sintam-se felizes ou frustrados quando não cumprem as expectativas sociais. Este argumento pode ser inteiramente aproveitado para o debate sobre a questão racial.
Há, contudo, uma tensão nas políticas públicas construídas a partir de determinado “marcador biológico”: ao reconhecer a existência de sujeitos que foram e são vulnerabilizados e excluídos por um determinado “marcador biológico”, possivelmente pode-se reforçar a ideia de identidades essencializadas. Este dilema não pode ser desprezado. Da mesma forma que não se pode olhar os dados socioeconômicos, observar os níveis de exclusão histórico de mulheres e negros e não se demandar políticas específicas, como o movimento feminista faz há décadas. Quando, por exemplo, se cruza estes dois marcadores (gênero e raça), encontramos as mulheres negras como as ocupantes dos níveis mais inferiores da estratificação social brasileira. Os “marcadores biológicos” transformam-se em marcadores sociais da desigualdade.
A solução para sairmos da saia justa “políticas afirmativas/reificação das identidades”, seria pensarmos no âmbito de políticas universais, onde todos teriam os mesmos direitos. Sem dúvida, este é o melhor projeto estratégico para o momento em que todos os corpos tenham os mesmos valores na sociedade, mas, considerando que o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans (transexuais, travestis, cross-dressing, drag queen, drag king, transgêneros, queers) no mundo e que a violência contra as mulheres não diminui, ainda temos um longo caminho pelo frente (para ficar na dimensão de gênero).
Embora não exista raça sabemos que ela opera na vida social, destruindo castigos e privilégios. A raça não existe, mas existe. Sempre que se ver um jovem negro vindo na direção oposta e se supõe que ele é um ladrão; na hora que policiais param preferencialmente carros conduzidos por negros, é a ideia de um comportamento inato dos negros que orientam estas ações. A dimensão de gênero não é exatamente a mesma?
A existência de políticas públicas diversas para a proteção e promoção da mulher, não tiveram a mesma intensidade de resistência quando comparada ao debate das cotas raciais. Ao contrário, as vozes sempre foram no sentido de pedir mais e mais políticas para corpos específicos: as mulheres. Daí podemos inferir que a crítica ao determinismo biológico tenha conseguido avançar mais na dimensão racial, despindo publicamente o racismo secular da sociedade brasileira. O mesmo não acontece para a questão dos gêneros. A perspectiva naturalizante nunca esteve tão fortalecida, apesar dos esforços de múltiplos ativismos e de uma pujante produção teórica no campo dos “estudos transviados” (tradução idiossincrática que faço para “estudos queer“).
Os desafios mais duros talvez sejam: 1) reconhecer a necessidade de políticas afirmativas específicos e 2) produzir discursos que neguem o primado biológico. No primeiro caso, as demandas devem ser encaminhadas ao Estado. No segundo, a disputa deveria acontecer em todos os níveis sociais, sem um centro único: movimentos sociais, nas salas de aula, na educação não segregacionista dos filhos (fim das chamadas “coisas de menina”, “coisas de menino”), na moda, no cinema, etc. Esta distinção é importante porque não se pode esperar que o Estado, instituição que se nutri da biopolítica, assumirá para si a tarefa de desnaturalização do gênero.
Homens-femininos, mulheres-masculinas
A nossa presidenta desconstrói, felizmente, todos os estereótipos da dita feminilidade. Assim como ela, milhões de mulheres e homens não se encaixam no padrão hegemônico para os gêneros. Embora a diversidade de masculinidades e feminilidades negue quaisquer possibilidades de se supor que sejam as estruturas biológicas os demiurgos de nossos desejos, pesquisas que tentam isolar as características celebrais das mulheres e dos homens não cessam. Os novos porta-vozes do determinismo biológico dos gêneros, definem que agora não são mais os cromossomos que definem nossas supostas identidades de gêneros, mas as estruturas neurais. E se você não se encaixa, possivelmente encontrará alguma categoria diagnóstica no DSM-5 (Diagnostic and Statistical Manual of ental Disorders) ou CID-10 (Código Internacional de Doenças) nos capítulos dedicados aos gêneros disfóricos. Por mais estranho que isso posso parecer, o gênero transformou-se em uma categoria diagnóstica há mais de 30 anos, sem que houvesse nenhuma resistência.
Talvez tenhamos que pensar em termos de uma abolição do gênero, negando o primado dos cromossomas, dos neurônios e dos hormonais na definição de quem somos. Os desdobramentos de uma visão que desvincule o gênero da biologia, teria efeitos práticos, como por exemplo, reconhecer imediatamente o direito das pessoas trans acionarem todas as políticas públicas que tenham o selo “gênero”, sem a exigência da presença de uma vagina ou de pênis. Outro desdobramento desta abolição seria demandar o fim de todos os espaços generificados, portanto, segregacionistas, a exemplo, dos banheiros.
Presenciamos nos últimos 08 anos um crescimento como nunca visto de pesquisas aplicadas que tem como objetivo encontrar a causa biológica da existência trans. Um fracasso atrás do outro. Nenhuma pesquisa conseguiu isolar o “genes” do gênero. Os ovários dos homens trans foram revirados, os restos celebrais (hipotálamos) das pessoas trans falecidas medidos e toda uma parafernália de hipóteses e pesquisas foram formuladas. Não se chegou a nenhum resultado aceito pela comunidade científica. Estas pesquisas são uma citação histórica das pesquisas realizadas por Cesare Lombroso, médico italiano que tinha como meta determinar o “criminoso nato” através da análise de características somáticas. Da mesma forma, os estudos para determinar a biologia dos gêneros são expressões das convenções culturais dominantes que supõem que a verdade de nós mesmos estaria em algum lugar do corpo.
Identidade de gênero como expressão do determinismo biológico
Se o gênero não é da ordem natural, como defini-lo? Existe identidade de gênero? Podemos pensar estas questões em dois momentos: 1) a dimensão invisível: a subjetividade e a 2) visível: a forma de apresentar-se ao mundo como membro de um determinado gênero.
A primeira dimensão é aquela que se refere à forma como se sente e se organiza (ou se desorganiza) as emoções. É comum escutarmos que as mulheres são frágeis, sensíveis e até que existe uma forma feminina e masculina de sentir o mundo. Em nossos cotidianos sabemos que isso não passa de historinha para boi dormir. Hoje, mais de 1/3 dos lares brasileiros são chefiados exclusivamente por mulheres. A ideia de subjetividades polarizadas é insustentável. Portanto, não há estabilidade suficiente para se afirmar que há uma subjetividade típica para cada gênero.
Em nosso dia-a-dia conseguimos reconhecer (quase sempre) quem é homem e quem é mulher porque socialmente se definiu modos de homem e modos de mulher. Mas quando eu olho para alguém e penso: é um homem, isso não significa que ele tenha pênis. O fato do meu olhar reconhecê-lo como homem é porque ele e eu compartilhamos os mesmos significados construídos socialmente para definir quem é homem ou mulher. O reconhecimento social, a visibilidade, não está condicionada a existência de determinada genitália.
Muitas vezes escutamos: nossa, mas é igualzinha a uma mulher?! Para se referir a uma mulher trans. Ela não é “igualzinha”. Ela é uma mulher, porque é assim que ela vive seu gênero. Estes deslocamentos acontecem diariamente com pessoas não trans que fazem gênero desfazendo gênero, ou seja, atualizam em suas práticas determinadas estilísticas que fogem do binarismo.
Qual o sentido de continuarmos dividindo a humanidade em dois gêneros, com duas identidades opostos? O mundo que nos cerca é feito por combinações diversas daquilo nomeado como masculino e feminino. Não soa estranho falar que “fulano age daquele jeito porque é negro”? No seu corpo estaria a resposta para suas condutas? Caso acredite nesta possibilidade, você tem uma grande possibilidade de ser racista. E com os gêneros? Por quê não temos o mesmo estranhamento quando escutamos pérolas como: “homem não chora”, “só podia ser coisa de mulher”, “sente-se como uma menina”? Se fosse natural, ninguém precisaria ensinar. O gênero é como a língua. Em determinado momento, por tantas repetições, parecerá que você nasceu sabendo falar. Toda a historicidade é apagada pela incorporação.
E para concluir a conversa com a minha amiga, ela disse: Nós mulheres temos útero e os homens não. Ela acabou citando, talvez sem querer, o filósofo Diderot que afirmava que as mulheres eram seus úteros. Uma parte do corpo, definiria toda a complexidade de um ser. E as mulheres que não podem ter filhos/filhas? E as mulheres que não querem ser mães? Não são mulheres? Mais uma vez, as armadilhas do determinismo biológico que pensávamos estar em algum lugar do passado apresenta-se.
_________________________________________________________
Berenice Bento é doutora em Sociologia e autores de vários livros na temática gênero e sexualidade.