O dia 25 de junho de 1978 ficou marcado nos livros históricos do futebol. Foi o dia do título mundial da Argentina do artilheiro Mário Kempes e do treinador Cezar Menotti. Uma Copa polêmica. Mas essa data também está viva e marcada – se preferir rabiscada – nas paredes do banheiro de um botequim mequetrefe de Buenos Aires.
Já era noite e a Avenida Camilo, importante via da capital Buenos Aires, estava tomada de hermanos enlouquecidos. Barulhentos, sem presilhas e qualquer medo de repressão, afinal eram os melhores do mundo dentro das quatro linhas. Era permitido comemorar.
Fora de campo, o país não vivia seus melhores dias. A ditadura militar do General Jorge Videla ditava as regras, julgava por suas intenções, maltratava seus filhos rebeldes e calava vozes por trás de paredes grossas e escondidas. Apenas o futebol podia gritar nas ruas.
Em umas das muitas ruas perpendiculares a Avenida Camilo, o garçom Jairo Garcia comandava o meio-campo do La Libertad, um boteco de rua onde muitos paravam para seguir os ritos de vitória do escrete “arrentino”. Lá era Jairo quem mandava. A ditadura passava longe, ficava no pódio do Monumental de Nuñes, presenteando cada guerreiro com suas medalhas de honra ao mérito.
Ali em Buenos Aires, há poucos metros do palco da final entre Holandeses e Argentinos, estava a Escola de Mecânica Armada, o ninho de prisioneiros da ditadura. Dava pra escutar os gritos de gol dos apaixonados no estádio. A ditadura era dura, mas a Argentina foi a campeã!
O povo comemorava com razão, o futebol fantasia nossas idéias, nos faz esquecer o maior problema, seja lá qual for. E o Opala 77 estava a contemplar os mais de “trocentos” torcedores apaixonados e felizes pelas ruas da capital. Dentro do Opala, a portadora da mensagem, uma prisioneira incumbida de transmitir a alegria de um povo para um grupo de subversivos.
O La Libertad era parada obrigatória. Os milicos sentaram numa mesa redonda, coberta com um lençol azul claro e detalhes amarelos, representando as cores da bandeira. A prisioneira condenada – à morte – se sentia sufocada com tanta festa. Os sucessos musicais da Copa cantados por todos os presentes no La Libertad soavam como vergonha para quem sabia que aquilo era uma enganação. A nação não ligava para o sangue que fora e ainda seria derramado.
O garçom-chefe estava desesperado. Era uma multidão implorando “un poquito de su atención”. Na falta de orçamento, Jairo era balconista, faxineiro, garçom e caixa. Seu salário era o melhor de todos – ao menos isso.
A prisioneira 009 se sentia ainda mais aprisionada em meio a tanta alegria. Ela não sentia. O ar era pouco para tamanha decepção. Os homens de patente estavam o tempo todo de olho em suas reações. Mesmo assim, conseguiu autorização pra ir ao banheiro. Era ao lado da mesa, praticamente. Foi lá que ela se libertou das amarras da opressão. Com seu batom vermelho rabiscou toda a parede do banheiro do La Libertad com os dizeres de desabafo: “ditadura assassina, ditadura assassina”…
O dia raiou, a dor de cabeça dos holandeses já havia cessado e a felicidade foi dormir. Cada um dos muitos torcedores em suas prisões domiciliares, em volta de muitos “proibidos”. Já a prisioneira, voltou ao seu cárcere de morrer um pouco a cada dia.
O garçom da noite, Jairo, seguiu sua rotina normal. Era hora de limpar os estragos do título mundial. Eu disse, ele era até faxineiro. Jairo ligou seu rádio valvulado, encostou em cima da pia e ao entrar no banheiro com o balde e as vassouras, deu de cara com os escritos vermelhos da noite passada. Tudo sujo. E o desespero da prisioneira sumiu em minutos. Enquanto a emissora local repetia a narração dos gols de Bertoni e Kempes, o garçom desonrava o nome do bar e apagava o grito de socorro das paredes do banheiro feminino.
“A Argentina é campeã mundial de 1978. Viva…”