A Laryssa Oliveira
O Quebrando o Tabu publicou, por esses dias, um anúncio no Facebook sobre o GNT. A equipe do canal deseja entrar em contato com pessoas não monogâmicas, saber de suas histórias, coisa e tal, pra produzir uma série discutindo as variadas formas de relacionamento afetivo não monogâmicas. Não pude deixar de compartilhar e marcar alguns amigos porque, né… não dá pra deixar de aproveitar uma oportunidade dessa.
Mas talvez eu não tenha tantos motivos assim pra comemorar. Se a não monogamia chegou na TV (por assinatura), é porque já há um tempo que as pessoas não monogâmicas lutam pra ser reconhecidas como tais – reconhecimento no sentido mais amplo e integral do termo, o que inclui aspectos jurídicos, econômicos, existenciais, afetivos e assim por diante. De Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir a Bertrand Russell, de Emma Goldman a Michel Foucault (menciono os da filosofia porque são os únicos que lembro agora – é bastante cômodo, já que é minha praia), houve movimentações, pranto e ranger de dentes, experimentações corpóreo-conceituais diversas – e tudo isso nadando contra a correnteza, salmões sequiosos de reproduzir e manter vivas suas ideias e afetos. Teve um tempo desses que vi no site da UOL, salvo engano, uma reportagem temática sobre o poliamor. Quatro pessoas não tiveram medo de mostrar a cara pras câmeras; já outros três preferiram se resguardar contra o impacto do preconceito. Cada um sabe onde o calo dói.
E aí entra a parte chata deste texto. Gostaria de agradecer, em primeiro lugar, a minha companheira pela assertividade com que respondeu às acusações de um cara em meu Facebook. Um amigo meu, não monogâmico, também fez uma ~participação especial~, enquanto uma garota (também não monogâmica) se contentou em rir de uma das facécias ditas. Mas gostaria, sobretudo, de agradecer ao cara, que incomodou com seu discurso preconceituoso contra a não monogamia. Pensei em retrucar ali mesmo, mas achei melhor discorrer sobre o ocorrido de forma mais demorada e paciente – não apenas pela vantagem óbvia de não pesar demais na tinta pelo calor do momento, mas porque é melhor pensar com os nervos frios (Beethoven é que sabia das coisas, ao molhar a cabeça com água gelada antes de compor seus trabalhos). De resto, só posso dizer que não é a primeira vez que comunico minhas impressões a respeito do problema que é a falta de empatia. Não é porque cada um sabe onde o calo dói que se pode imaginar a dor alheia.
Pois bem: vejamos as coisas que meu interlocutor monogâmico soltou em seus comentários:
a)Relações não monogâmicas só servem a quem é jovem ou não tem filhos.
b) Poligamia e pansexualismo (sic) são coisa de gente progressista que não sabe o que quer.
c) Ele duvida, ainda, que pessoas não monogâmicas levem o chifre na boa. (Ele se esclareceu adiante falando em um sentido figurado – chifre como quebra de acordo entre as pessoas envolvidas, não como traição; mas isso não quer dizer muita coisa. Veremos adiante por quê.)
d) De acordo com ele, a não monogamia é coisa de teóricos que não condizem com a realidade humana ou não provam nada – mais precisamente, adeptos do marxismo cultural.
e) No fim das contas, essas “teorias progressistas inefáveis” (tô me sentindo o Pseudo-Dionísio Areopagita sendo afetado pelas trevas luminosas do Divino depois dessa – a luz se fez!) pretendem transformar o mundo num megacabaré baseado numa divisão de bens. Mas o grand finale mesmo é o mal-estar da civilização, do qual nós não monogâmicos não podemos escapar.
Antes de comentar ponto por ponto, preciso assinalar um pressuposto geral desses argumentos: a simbiose entre sexualidade e orientação política. Pessoas mais conservadoras seriam, assim, adeptas de relacionamentos ortodoxos, com aquele blá-blá-blá de moral e bons costumes, ao passo que progressistas buscam superar essa ortodoxia afetiva. Você, que é de esquerda e concorda com isso: meus pêsames. Tanto você quanto meu interlocutor conservador querem, basicamente, enquadrar o círculo, analisando o irracional pelo racional. Não que a não monogamia não possa ser racionalizada; é claro que pode (do contrário, seriam infrutíferos os textos que tratam de explicar, apresentar ou analisar a não monogamia), mas com a condição de não usar a racionalidade monogâmica. O universo não monogâmico é diferente tanto do monogâmico quanto do poligâmico, porque estes últimos se baseiam em um regime de hierarquia e obrigações afetivas e sexuais (leia-se ~fidelidade~). A recusa a esse regime é um dos pilares essenciais da não monogamia; contudo, como veremos adiante, essa pretensa simbiose (1) entre sexualidade e orientação política simplesmente não existe.
Desmontando essa simbiose, fica mais fácil comentar e rebater os argumentos (???) de meu interlocutor:
a’) “Relações não monogâmicas só servem a quem é jovem ou não tem filhos” – <ironia>é claro que sim: pessoas não monogâmicas são inférteis por seleção social (maldito Darwin!)</ironia>. Só que meu interlocutor se esqueceu de mencionar o estrago que a criança sofre quando os pais se casam só porque a mulher engravidou, que mães e pais solteiros podem sim criar seus filhos… Esqueceu, sobretudo, que pessoas não monogâmicas são, antes de mais nada, seres humanos – e, como tais, podem decidir se querem filhos ou não. Quando ele ler sobre uma criança com duas mães e o pai na certidão de nascimento em Santa Maria (RS), vai ter um treco – principalmente pelo fato de que o pai apenas entrou com o esperma, já que as mães estão em um casamento homoafetivo. No entanto, existe um aspecto assinalado pelo juiz que concedeu parecer favorável à ação que deve ser ressaltado aqui: o objetivo das mães e do pai é assegurar à filha deles uma rede de afetos. Por motivos adivinháveis, a rede de afetos é virtualmente maior em relacionamentos não monogâmicos do que monogâmicos, mesmo se compararmos com pessoas que foram criadas por mais de duas pessoas (avós, tios, vizinhos ou amigos de família).
b’) “Poligamia e pansexualismo (sic) são coisa de gente progressista que não sabe o que quer” – não vou nem entrar na questão terminológica sobre o que é “poligamia” ou “pansexualismo”. Basta lembrar a não correspondência entre sexualidade e orientação política. Nem todas as pessoas não monogâmicas estão preocupadas em melhorar o mundo (infelizmente); aquelas que são ativistas (principalmente as mulheres) sofrem muito com o machismo de companheiros não monogâmicos. Pra não falar em problemas de racismo, classismo, cissexismo, capacitismo… O casal Beauvoir e Sartre, acima mencionado, não raro faziam seus parceiros de gato e sapato – uma das entrevistadas em uma biografia deles, produzida por Carole Seymour-Jones, relata que a filósofa feminista destratou a amante de cabo a rabo. Ainda assim, dizer que pessoas não monogâmicas não sabem o que querem é de uma estupidez sem tamanho, principalmente quando constatamos que há tanta gente mal resolvida na monogamia e dá exclusividade sexual e afetiva por pura carência. Minha experiência diz que pessoas não monogâmicas lidam melhor com indecisões do que pessoas monogâmicas, pelo fato suficiente de que estas são menos dispostas a jogar limpo do que aquelas.
c’) “Ele duvida, ainda, que pessoas não monogâmicas levem o chifre na boa” – como diz o ditado popular, chifres não existem. E acrescento: são coisas que botaram na cabeça das pessoas monogâmicas. Ideias como “chifre”, “traição”, “infidelidade” não cabem no universo não monogâmico. Isso não equivale a dizer que pessoas não monogâmicas não sofram de ciúmes ou insegurança, mas que estão dispostas a negociar os termos de seus relacionamentos e a respeitar a liberdade umas das outras. Além do mais, o desrespeito ao acordo firmado é prejudicial tanto na monogamia quanto na não monogamia. A não monogamia não é o Graal das relações amorosas.
d’) “(…) a não monogamia é coisa de teóricos que não condizem com a realidade humana ou não provam nada – mais precisamente, adeptos do marxismo cultural” – se existe uma coisa que descreve bem a realidade sexual e afetiva humana melhor do que qualquer teoria monogâmica ou não monogâmica, é o seguinte ditado: cavalo amarrado também pasta (2). A teoria é só uma forma de lidar com essa realidade – e são tantas as teorias quantas as pessoas e os arranjos afetivos possíveis. Pra não falar da prática mesmo, no dia a dia, nas rodas de conversa e nas idas ao cartório! Já o “marxismo cultural” é uma expressão tão adequada ao marxismo quanto o “politicamente correto” é para as lutas emancipatórias – ambos baboseiras criadas pela direita americana. Na verdade, quem mais contribuiu para a elaboração teórico-vivencial da não monogamia foi o anarquismo – o marxismo sempre esteve mais preocupado em fazer o bolo econômico crescer do que as outras coisas. Teve uma vez que li no Face uma disparate: o amor livre só será possível quando o capitalismo for superado. Ou seja, a não monogamia, tal como conhecemos atualmente, é um protótipo mal elaborado, insuficientemente digno da expressão “amor livre”. “Como se o amor pudesse ser outra coisa que não livre!”, já bradava Emma Goldman na primeira metade do século XX. Temos mesmo que esperar o capitalismo desmoronar, junto com todas as formas de opressão existentes pelo globo afora? No que me diz respeito, essa escatologia, esse messianismo marxista são inúteis. Prefiro pensar no amor livre mais como um processo do que um ideal a ser atingido – o amor livre só existe enquanto prática, não enquanto meta. É um exercício diário do indivíduo consigo mesmo e com os outros, mais do que a chegada à Terra Prometida pelo marxismo.
e’) “No fim das contas, essas ‘teorias progressistas inefáveis’ (tô me sentindo o Pseudo-Dionísio Areopagita sendo afetado pelas trevas mais que luminosas do Divino depois dessa – a luz se fez!) pretendem transformar o mundo num megacabaré baseado numa divisão de bens. Mas o grand finale mesmo é o mal-estar da civilização, do qual nós não monogâmicos não podemos escapar” – não há nada de inefável na não monogamia. Pelo contrário, existe uma vontade de esclarecimento avassaladora por parte das pessoas não monogâmicas. O problema é que o esclarecimento não basta. Não basta saber que relações abertas são diferentes de relações livres, poliamorosas ou swing. Não basta saber que nem toda pessoa não monogâmica quer saber das escapulidas de outra pessoa não monogâmica. O grande desafio das pessoas não monogâmicas é propor uma sensibilidade diferente e tentar se desprender, na medida do possível, do mal-estar da civilização a que meu interlocutor aludiu. Entretanto, isso também não basta. O catalisador da sensibilização não monogâmica é a própria pessoa monogâmica, que precisa querer abstrair de seus preconceitos e visualizar o quadro não monogâmico como algo concreto e legítimo. As pessoas monogâmicas precisam parar de vomitar coisas como “não sei se eu conseguiria”, “isso não é pra mim”, “você é poligâmico?”, “você ainda não encontrou a pessoa certa”, você é promíscuo” – como se promiscuidade fosse algo negativo, né? Prefiro ser promíscuo e bem resolvido enquanto não monogâmico do que promíscuo, hipócrita e monogâmico. Não quero que você abandone a monogamia. Também não quero saber se você conseguiria entrar numa relação assim. Quero que você saia de sua zona de conforto, seus esquemas prévios, sua bitola mental, e me dê o respeito de que preciso pra conviver com você; que você possa imaginar o deleite de uma pessoa não monogâmica no relacionamento dela; que você reformule sua própria monogamia e abrace também o amor livre, que não é prerrogativa privilegiada de nenhum relacionamento. Garanto que minha parte eu faço – e é muito mais do que não cobiçar a mulher alheia (monogâmica ou não).
(1) Lembrando que simbiose é uma relação harmônica e obrigatória entre dois seres vivos ou mais.
(2) Destrinchei essa frase em meu texto aqui na Carta Potiguar: “O medo do amor livre”