Do blog “Cinema Secreto: Cinegnose” – Jamais fume, fale palavrões, beba álcool ou tenha atitudes inconvenientes ao lado de um Papai Noel. Ele poderá matá-lo. Isso porque por baixo da roupa natalina esconde-se um raro ser ardiloso e cruel, caçado na Finlândia, treinado para executar o papel do bom velhinho e exportado para todos os shopping centers do mundo pela empresa Rare Exports Inc. Pelo menos é o que pensa o cineasta finlandês Jalmari Helander, um estudioso não só das origens do mito, mas da sua conversão publicitária norte-americana feita pela Coca-Cola. Os curtas “Rare Exports Inc.” (2003) e “The Official Rare Exports Inc. – Safety Instructions” (2005) são produtos da fixação do diretor pelo personagem e que, mais tarde, acabou resultando no longa metragem “O Papai Noel das Cavernas” (2010): são fábulas que mostram o quanto de frieza administrativa, gerenciamento e treinamento de recursos humanos está por trás de cada rosto feliz dos papais noéis, funcionários e atendentes de toda a estrutura comercial que se traveste com signos da compaixão e do amor ao próximo. Veja os dois curtas.
De onde vêm os papais noéis de todos os shoppings centers do mundo? São velhinhos aposentados que fazem bico no final de ano para aumentar um pouco a renda? Não, segundo o diretor finlandês Jalmari Helander: eles são raros produtos de exportação do seu país, caçados por corajosos homens na Lapônia para serem vendidos para todo o mundo
“Antes de cair a primeira neve do inverno, caçadores profissionais começam o seu trabalho. O longo processo de rastreamento, caça e transformação desse rei da floresta em um produto acabado é um longo processo, mas o resultado final é motivo de comemoração.”
Assim inicia o curta Rare Exports Inc. de 2003, cuja sequência resultou em 2005 em outro curta intitulado The Official Rare Exports Inc. Safety Instructions e, mais tarde, no longa O Papai Noel das Cavernas (Rare Exports – A Christmas Tale, 2010). Talvez Jalmari Halander seja o adulto que mais pensa em Papai Noel, mais do que muitas crianças.
Halander se incomoda coma versão norte-americana que a Coca Cola fez do Papai Noel, uma versão customizada e suavizada, bem diferente da original europeia: “Eu acho que há uma versão diferente em cada país europeu. Na Finlândia, Santa Claus é um personagem muito assustador para as crianças com seus longos chifres. Ele é um tipo de cara que costumava assustar as crianças no Natal. Se elas não se comportassem, ele aparecia e rodeava a casa para espancá-las, ou algo assim. É totalmente oposto da versão norte-americana do Papai Noel. Por isso tento honrar as tradições.” (“Interview with Rare Exports director Jamari Helander” In: The UHF of the Film World).
No curta Rare Exports Inc. temos o início da saga: caçadores especializados buscam esse rei das florestas da Lapônia, uma selvagem espécie de monstro cruel, ardiloso e carniceiro. Depois de capturado é submetido a um longo processo de adestramento e condicionamento baseado no esquema behaviorista estímulo-resposta-reforço positivo. Um boneco de pano substitui uma criança real no longo treinamento de segurar uma criança no colo e sorrir carinhosamente para ela, gesto que será mecanicamente repetido em cada shopping center do mundo no futuro. Depois de finalizado e aprovado pelo controle de qualidade, o agora “Papai Noel” é encaixotado e recebe o selo “Rare Export”, o produto mais exportado pela Finlândia.
A continuação, o curta de 2005 The Official Rare Exports Inc. Safety Instructions, é ainda mais impagável. Em estilo mockumentary, é como fosse um vídeo institucional da empresa Rare Exports Inc. para ser visto exclusivamente pelos distribuidores e importadores, com um aviso: “contém imagens perturbadoras”. O curta apresenta detalhadas recomendações para que os clientes manuseiem com segurança a ardilosa fera que ainda existe dentro do Papai Noel. Alguns comportamentos devem ser evitados na presença do produto finlandês: fumar, beber, falar palavrões e toda lista de más condutas que podem fazer o dócil Papai Noel retornar às suas origens selvagens. Ah! Mas tem uma forma de salvação se as coisas saírem do controle: ofereça para ele um biscoito de gengibre… eles adoram…
Religiosidade e o frio mundo dos negócios no Natal
Além de honrar com as tradições do seu país, Helander faz nesses dois curtas-metragens uma irônica abordagem da tradição natalina que é um verdadeiro mix da religiosidade cristã com elementos míticos pagãos e racionalidade administrativo-mercantil do mundo dos negócios. Uma fábula que mostra o quanto de frieza administrativa, gerenciamento e treinamento de recursos humanos está por trás de cada rosto feliz dos papais noéis, funcionários e atendentes de toda a estrutura comercial que se traveste com signos da compaixão e do amor ao próximo
Assim como o dócil e amoroso Papai Noel da Rare Exports Inc., resultado de exaustivo e violento programa de condicionamento, mas que ainda esconde dentro de si o desejo de vingança, da mesma forma todas as pessoas envolvidas nas ações de vendas e marketing natalinos devem atuar nos seus papéis rigidamente ensaiados nos departamentos de recursos humanos: gestos, olhares e pequenos favores cuidadosamente estudados para se criar a atmosfera natalina de boa vontade.
E qualquer má conduta como falar palavrões ou fumar podem fazer despertar no Papai Noel a lembrança da sua origem selvagem, assim como no mundo real dos negócios a assepsia dos shoppings centers se confunde com a boa vontade natalina. E o que é pior: “más condutas” podem fazer lembrar aos profissionais do “espírito de natal” que são livres e que o script natalino é uma imposição corporativa, despertando a pulsão anti-social presente em cada um de nós.
Papai Noel: um rito de passagem
Helander faz não só uma fábula do presente como também um resgate das raízes do mito do Papai Noel. Phyllis Siefker em seu livro “Santa Claus, Last of the Wild Men: The Origins and Evolution of Saint Nicholas, spanning 50,000 years” afirma que Papai-Noel é descendente de uma longa linha soturnos, sujos e peludos deuses remanescentes da era pré-cristã. Através de milênios sua figura surge em muitos países adaptando-se às regras e mudanças sociais. Através da Europa, esse deus selvagem fez parte de festividades e rituais de fertilidade, relembrando os ciclos da natureza, morte e renascimento.
Um exemplo é a figura de “Pencenickel” (Pelznickel no original alemão) que usando máscara e roupas escuras trazia correntes para prender as crianças mal comportadas. Halander vai buscar nas tradições finlandesas essa mesma origem soturna do bom velhinho: na verdade um monstro criado para manter as crianças na linha, aterrorizando-as para forçá-las a obedecerem e respeitarem as normas sociais.
Haeander resgata essa tradição dos ancestrais de Papai Noel associados a festividades e rituais de fertilidade que eram muito mais do que isso: para as crianças e jovens, um ritual de passagem onde, através do medo e terror, lembrar a eles que os deuses são poderosos, impacientes e sem compaixão.
Com a religião essas formas pagãs ou foram reprimidas ou sublimadas como no ritual do sangue e do corpo de Cristo convertidos em hóstia e vinho. E revivem em plena era hightech atual por meio da indústria do entretenimento. Não é à toa que é recorrente no cinema revival dessas origens mítica de um Papai Noel que, de repente, converte-se em demônio ou serial killer: Bad Santa (2003), Black Christmas (1974), Christmas Evil (1980), Silent Night, Deadly Night (1984), Jack Frost (1996), Don´t Open Till Christmas (1984), Uma Noite de Fúria (Santa’s Slay, 2005) etc.
Isso sem falar no medo atávico que muitas crianças experimentam ao se defrontarem com o bom velhinho em shoppings ou no pânico que tomam muitos filhos ao verem seus pais aparecerem da escuridão da noite vestidos de Papai Noel.