Entrevista com Berenice Bento, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Doutora em Sociologia e pós-doutoranda na City University of New York (EUA/Bolsa do CNPq). Publicada no site http://www.ihu.unisinos.br/
IHU On-Line – Como interpreta as reações de xingamento e desqualificação de pessoas por morarem em determinadas regiões do país, ao longo das eleições? Após o resultado das eleições do primeiro turno, os paulistas receberam muitas críticas por terem reelegido Alckmin, e no segundo turno os nordestinos receberam muitas críticas por terem votado em Dilma. O que isso revela sobre o Brasil?
Berenice Bento – Sobre os paulistas terem reeleito Alckmin, escutei avaliações raivosas, esvaziadas, mas nada tão agressivo quanto os comentários em relação à vitória de Dilma e, particularmente, a centralidade que a figura do nordestino assumiu como suposto responsável por supostamente manter o Brasil na contramão do desenvolvimento, a exemplo da fala de Diogo Mainardi naGlobo News. Vale lembrar, contudo, que o preconceito aos nordestinos não é algo inventado nestas eleições. Em São Paulo, falar que alguém fez uma “baianada” é o mesmo que qualificá-lo como portador de pouca inteligência.
No Rio de Janeiro, o “baiano” é transmutado em “paraíba”. Então, a desqualificação das pessoas, tomando como referência a região, é algo recorrente. O grande fluxo de nordestinos para o Sudeste é relativamente recente, remonta à segunda metade do século XX. Desde o primeiro momento, os nordestinos foram fundamentais para o projeto de modernização econômica do país. E é esta força de trabalho formada por homens, mulheres e crianças que chegam aos milhões, durante décadas, nas rodoviárias do Sudeste.
As figuras do “paraíba” e do “baiano” funcionam, de certa forma, como uma nomeação externa interpelada pelos moradores locais, uma forma de, através da linguagem, produzir muros simbólicos entre os “nativos” (cariocas da gema, por exemplo) e os outros. Além da pobreza que os nordestinos representavam, há marcas corporais que são reiteradamente citadas como mecanismo de produção de estigma: cabeça grande, o sotaque cantado, a altura, as comidas que passam a ser consideradas marcas de diferenciação negativadas. Enfim, um conjunto de supostas características que são naturalizadas com dois propósitos: ao negar qualquer inteligência a este corpo nordestino, o local (ou seja, o paulista e o carioca) se constrói como superior. Com isso, podemos ver que o processo de construção de posições identitárias está “condenado” a ser, desde sempre, relacional. O pensamento hegemônico paulista e carioca precisa reiterar o lugar inferior do nordestino para se produzir como espécies nobres no âmbito da nação brasileira. O Brasil, portanto, seria o Rio de Janeiro, São Paulo, e o resto, neste enorme campo de “restos”, são os nordestinos, que ocupam a posição mais inferior.
Quando falo em termos de “pensamento hegemônico”, é para destacar que há outros discursos que circulam, que discordam completamente de se atribuir e definir comportamentos e identidades a partir do local de nascimento e que fazem uma luta contra o determinismo biológico, inclusive no Rio de Janeiro e São Paulo. O que eu estou tentando apontar é que no momento pós-eleições estas disputas discursivas ficaram mais claras, hiperbolicamente.
IHU On-Line – Há mais discriminação em relação aos nordestinos do que a pessoas de outras regiões do país?
Berenice Bento – Para entendermos a rejeição a uma suposta forma de ser nordestino, no dia a dia, e do ódio estampado nas caras e palavras de algumas pessoas nos últimos dias, é necessário sair da conjuntura e pensar esta disputa identitária nos marcos de uma reflexão sobre a própria natureza das identidades. O tropo “região” foi um mecanismo acionado pelos colonizadores para definir os lugares dos corpos na hierarquia social, econômica, política e divina. A fronteira é mais do que uma marcação física e objetiva. Os que estão fora, para terem direito a entrar, devem passar por processos de assimilação que deverão resultar em apagamento de seus registros culturais, aprender uma nova língua, adorar um novo deus para serem aceitos como membros de uma comunidade (seja o novo estado, uma nação, ou mesmo em grupos identitários).
Por que o ódio aos nordestinos? Porque eles são nordestinos. E poderíamos brincar com a palavra norDESTINO. Aqui, a própria região seria o destino. Nascer no Nordeste é trazer marcas que irão definir a totalidade do ser, e nada se pode fazer para romper este destino definido pelo local de nascimento. Ninguém consegue escapar dos imperativos impostos pelo meio geográfico. Ou seja, o local de nascimento seria o selo definitivo para explicar uma suposta inferioridade. Pela lógica do determinismo geográfico, não é preciso muito argumento: eles são como são porque são nordestinos. Estamos diante, portanto, de uma sobrevivência do pensamento colonizador. Isso também tem um efeito contrário: a valorização de tudo que vem dos centros dominantes. O pensamento colonizador não consegue olhar uma determinada dimensão da vida social e complexificá-lo. Tudo se passa no âmbito do binarismo: nordestino versus sudestinos (acho que eu acabei de inventar uma palavra: “sudestinos”). Então, se congela o outro em uma posição regionalizada. Essa seria uma possibilidade de explicação.
Ódio aos nordestinos nas eleições
Mas gostaria de sugerir uma possível explicação para as manifestações coletivas de ódio ao nordestino na atual conjuntura. Conforme apontei, isso não é novo, o que parece assustador é a intensidade dos insultos, que tiveram a cidade de São Paulo como principal cenário. Acho que há um subtexto aí. O Partido dos Trabalhadores tem como grande líder um nordestino, de origem pobre, com pouco estudo e que não se envergonha de falar disso, que não fez concessão à elite intelectual, no sentido de performatizar um conhecimento acadêmico que não tem. Ele esfregou a sua diferença na cara de uma elite que está de costas para o Brasil e olhando para a Europa como o grande oásis da suposta existência pensante.
Nunca na história do Brasil tivemos um presidente com uma origem de classe como a de Lula. A política sempre foi assunto da elite econômica e aos pobres cabia a função de votar em quem os coronéis (tanto urbanos quanto rurais) mandavam. Acho que, por sua biografia, Lula pode ser considerado como um herói dos tempos do capitalismo: alguém que provou que com esforço pessoal é possível vencer, uma narrativa que está impregnada, por exemplo, no imaginário dos Estados Unidos. Ele foi para o Sudeste e conseguiu “dar a volta por cima”. O que me parece interessante é que a elite brasileira naturaliza de tal forma a pobreza e os pobres, que não consegue nem fazer um discurso de reconhecimento dos esforços pessoais das pessoas que subvertem seus destinos de classe social; ao contrário dos valores estadunidenses, que se alimentam dos exemplos de histórias de vida como as do Lula para continuar reproduzindo a ideia de que o capitalismo é o melhor sistema do mundo, pois os sujeitos têm liberdade para crescer e mudar seus próprios destinos.
A elite econômica brasileira é feroz. Mas elite econômica não é o mesmo que elite intelectual. Quase todos os reitores das universidades públicas brasileiras declararam apoio à Dilma. Então, o ódio ao nordestino, nesse contexto, tem outro texto: O ódio de classe que encontra no PT e no Lula a materialização de um medo profundo de perder os privilégios seculares baseados na exploração da força de trabalho.
Dizem que o ódio cega, isso é verdadeiro. Identificar o PT como um partido comunista é uma completa desconexão com a realidade. O mínimo, como, por exemplo, garantir que as pessoas tenham comida e não morram de fome, no âmbito do programa FOME ZERO, é enxergado como o máximo para a elite.
Passeatas pela militarização
Eu também acho que é possível fazer uma leitura atravessada das manifestações reivindicando o retorno da ditadura militar. Na campanha anterior, a presidenta Dilma não tinha assumido com tanta força o seu passado de ativista contra a ditadura, a tortura que sofreu e a sua resistência. Nesta eleição, este passado foi retomado com força, a exemplo do slogan “Dilma, coração valente!”. O pedido de retorno da ditadura me diz o seguinte: Por que vocês não fizeram o trabalho completo, senhores militares? Por que deixaram esta mulher sobreviver? Certamente, para uma presidenta eleita democraticamente, que tem o passado dela, o pedido de intervenção militar deve soar como uma profunda agressão. Portanto, tanto no caso dos nordestinos quando no apelo ao retorno da repressão, o desejo manifesto é atacar o PT, que, nesta cegueira de classe, é identificado como um partido comunista.
IHU On-Line – Qual é o impacto desse tipo de reação no processo eleitoral? Acaba-se tendo uma influência muito mais emotiva do que política?
Berenice Bento – Durante as eleições, tudo está à flor da pele. A emoção faz parte. Foi um processo histórico que nunca aconteceu antes. É um momento rico e devemos ter mais serenidade para entender as múltiplas intencionalidades e interesses que foram e estão sendo postos em cena. Temos que evitar análises binárias entre uma disputa entre PSDB e PT. Tem uma diversidade a ser considerada. Há pessoas que votaram no Aécio e veem o nordestino como uma figura abjeta, nojenta, que tem de ser eliminada, mas, por outro lado, muitas pessoas votaram nele porque simplesmente não suportam mais a ideia da corrupção. O que nós tivemos no Brasil nos últimos anos foi um massacre midiático: quase todos os dias manchetes nos jornais mostravam corrupção, corrupção, corrupção. Um julgamento pelo STF transmitido ao vivo, políticos sendo algemados e encarcerados, tudo com ares de espetacularização.
Não quero entrar aqui no debate de possíveis vias do Judiciário, mas sim nos efeitos que esta avalanche de discursos em torno da corrupção produziu nas subjetividades dos eleitores. Pós-eleições, por exemplo, pessoas foram para a rua pedir o impeachment de Dilma, outros pedindo intervenção militar e outros, na mesma manifestação, tinham faixas contra a corrupção e pela liberdade de imprensa. Olha a contradição! Que tipo de unidade política unifica este coletivo de gente que vai para as ruas? Como é possível demandar intervenção militar e liberdade de imprensa? Daí eu acreditar que não se pode lidar com os eleitores do PSDB como uma “massa” uniforme. Então, existe uma diversidade de intenções e desejos desse bloco que tem sido intitulado como “direita”, e eu não concordo com este simplismo analítico.
Do mesmo jeito acontece com quem votou no PT. Não se iluda. Muitos dos que votaram no PT estão longe de assinar embaixo o conjunto das ações do governo petista. É claro que o PT tem um ativismo aguerrido, dedicado, mas está longe de representar a maioria dos votos que a Dilma recebeu. Minha filha disse uma frase lapidar: “Jamais vou perdoar o Aécio por ter me obrigado a votar na Dilma”. Então, é isso, as pessoas votam, mas isso não significa que se cristaliza uma posição pelo voto. Muitos ativistas dos Direitos Humanos foram claros: o voto no menos pior. E no dia seguinte à eleição começa o trabalho de pressão. Do mesmo modo, muitas pessoas devem ter dito e pensado que jamais vão perdoar a Dilma por terem votado no Aécio. Portanto, as binaridades não nos ajudam a compreender as dinâmicas das relações sociais.
Em plena eleição tem um escândalo envolvendo a maior estatal brasileira, a Petrobras. Eu sou professora de uma universidade pública e sou ativista dos direitos humanos em torno da questão das sexualidades e dos gêneros, e me pergunto: o que foi o governo Dilma para essa área? A conivência e o conchavo do PT para a eleição do Marcos Feliciano para presidir a Comissão dos Direitos Humanos não pode ser secundarizada. Por outro lado, eu também sou professora de uma universidade pública e, por uma questão ética, não posso negar as profundíssimas mudanças que estão em curso nas universidades. Estou neste espaço há 30 anos, seja como estudante ou professora. Nunca vimos nada parecido. As cotas, o aumento de verbas para ampliação dos campus, a ampliação da quantidade de bolsas de mestrado e doutorado, a abertura de novas universidades, o Programa Ciências Sem Fronteiras, o ENEN.
Poderíamos gastar horas e horas debatendo os problemas de cada um dos pontos que acabei de citar. Apenas um exemplo: o Ciências Sem Fronteiras é limitado a determinadas áreas do conhecimento. Isso é verdade, mas o programa está criado. O que temos que fazer? Pressão política para ampliação de recursos e do seu alcance. E ao reconhecer estas mudanças positivas, não posso me calar diante dos problemas que temos com os nossos salários, até porque parte considerável do que recebemos aparece em nossos contracheques como “gratificação”, o que terá impactos tremendos na hora da aposentadoria.
Críticas à imprensa
Por outro lado, nesta polifonia de reivindicações, tem uma coisa que repete: “abaixo à Rede Globo”. Esse “abaixo àRede Globo” é abaixo à imprensa que manipula, não informa e deturpa. Uma coisa é certa: a imprensa brasileira vive uma crise de legitimidade que precisa ser discutida e mudanças implementadas. Tanto os eleitores do PSDB quanto do PT têm denunciado as manipulações da Folha de São Paulo, de O Globo, da Veja, da Rede Globo.
Quando os jornalistas do Jornal Nacional estavam entrevistando os candidatos, parecia que estavam conversando com bandidos, porque a grande questão era fazer pegadinha, saber quando o candidato mentia, quando, na verdade, o grande bandido (aquele que nos rouba o direito a ver o contraditório e à informação qualificada) estava do outro lado da bancada. No dia em que esta indignação contra a imprensa se transformar, de fato, em propostas concretas do controle social da imprensa por meio de mecanismos democráticos, podemos pensar em um salto qualitativo na politização da nossa sociedade.
Apenas para ilustrar as artimanhas discursivas que a imprensa utiliza para manipular a realidade, basta ver a ênfase (e ênfase aqui significa repetição e repetição, quase como um mantra) dada à frase “o Brasil saiu das eleições dividido”. Mas isso é uma brincadeira com a nossa inteligência, não pode ser levado a sério, porque esta é a própria essência do capitalista: divisão por classes, por gêneros, por raça. É impossível ter uma sociedade capitalista que não tenha divisão. A imprensa reforça essa dimensão da divisão agora para culpabilizar o PT. Mas quando Collor foi eleito, houve uma celebração das elites econômicas e políticas via seus porta-vozes costumeiros: a imprensa, apontando a vitória da democracia.
Agora que o debate sobre democracia e justiça social apareceu com cores um pouco mais fortes, se fala em divisão. O que era democrático, agora aparece como negativado. Isto releva como se podem construir realidades a partir da utilização de determinadas palavras. Antes, a “democracia” era exaltada, agora é “divisão”, quase um chamado para a guerra. Isso me parece um truque na produção de narrativas. Um truque sutil que a imprensa é craque em fabricar.
IHU On-Line – Como e em que medida esse discurso de xingamento impede ou atrapalha, na prática, uma análise regional das eleições?
Berenice Bento – O ódio aos nordestinos impede que se analise melhor o resultado das eleições. E, mais uma vez, a imprensa falha (intencionalmente) em não analisar os fatos. A presidenta Dilma não obteve maioria dos votos apenas nos estados do Nordeste. Mas, como eu disse, o ódio produz cegueira e surdez. Não há diálogo possível com alguém que já começa um suposto diálogo dizendo que você não merece viver, como eu escutei gritos de pessoas nas ruas de São Paulo: “morte aos nordestinos!”. E quando há violência simbólica neste nível, a única mediação possível é o Judiciário.
IHU On-Line – Que políticas públicas o PT tem desenvolvido no Nordeste ao longo desses 12 anos? É possível apontar mudanças significativas na região após 12 anos de PT na presidência?
Berenice Bento – Posso falar das universidades que conheço de perto. Houve uma ampliação dos campos universitários. Estou falando de educação, de investimento em pesquisa. Estou nos Estados Unidos fazendo pós-doutorado com financiamento público. Colegas professores norte-americanos de universidades com grande prestígio internacional não entendem como é possível que um país pobre, com uma injustiça social profunda, mande seus estudantes com bolsa do governo para estudar fora, não entendem como professores saem para fazer um pós-doutorado com bolsa e com salário. Aqui, quando há licenças sabáticas, geralmente o professor não recebe nenhuma bolsa e o salário pode diminuir em até 50%. Não se pode comparar o período desses 12 anos com o período deFernando Henrique, não tem como, as universidades estavam fechando, departamentos que não podiam oferecer disciplinas porque professores se aposentavam e não havia concursos para novas contratações.
É sem sentido identificar o voto à Dilma com pessoas sem formação. Quase 100% dos reitores das universidades votaram pela reeleição da Dilma (e não apenas os reitores das universidades nordestinas), a elite intelectual do Brasil, a que faz pesquisa, que produz, que coloca o Brasil nos periódicos científicos nacionais e internacionais e que participa de eventos, não vou dizer 100% porque seria um absurdo da minha parte, mas a grande maioria votou no PT. Por que isso? Porque obviamente é um voto de interesse. Parte importante da classe média alta, como, por exemplo, muitos professores de universidade com salários na faixa dos 10 mil a 15 mil reais, votou na Dilma. Portanto, aqui há outro erro em identificar a classe média brasileira como eleitora do PSDB. Parte considerável desta classe votou no PT.
IHU On-Line – Deseja acrescentar algo?
Berenice Bento- Precisamos de um pouco mais de tempo para entender realmente o que está acontecendo. As coisas ainda estão confusas. Tantas coisas aconteceram em tão curto espaço de tempo (milhões de pessoas foram às ruas ano passado, a Copa e outras centenas de manifestações, as eleições) e nós ainda estamos meio “nocauteados” com tudo isso. Precisamos de mais tempo para entender as naturezas e os alcances de toda esta fervura.