Por Lucas Sidrim
Passados dois dias, revejo com calma os eventos que me aconteceram. Não sem a sensação de surrealismo. Talvez por não entender que, em minha cidade, em meu próprio bairro, possa presenciar algo assim. Mais que isto, protagonizar.
Domingo, 18 horas. Jatobar – estabelecimento próximo ao Praia Shopping. Às 19 horas sairia o resultado da apuração das eleições. Fui com dois amigos. Ficamos em uma mesa fora, na calçada. O bar estava cheio de eleitores de Aécio, com bandeiras e adesivos. Nós três estávamos com camisas vermelhas, com o nome de Dilma estampado, junto a adesivos. Dentro, uma mesa com cerca de 10 jovens. Nunca tinha visto qualquer uma daquelas pessoas – embora Natal seja uma cidade pequena, claramente não frequentávamos os mesmos lugares nem mantínhamos os mesmos gostos.
Um deles, de camisa amarela, adesivado e com a bandeira, a todo instante saía de sua mesa e ia até a rua, agitando a flâmula em prol de seu candidato. Olhava para nós e soltava uma risada, um olhar de escárnio. Fez isso mais de 3 vezes. Não revidamos em qualquer instante, atentos ao celular, acompanhando as notícias pelo Twitter e pelos grupos de Whatsapp.
Pouco depois me levantei para ir ao banheiro, que fica ao fim de um corredor, mais para dentro do recinto. Passo ao lado da mesa que descrevi. O rapaz de amarelo, claramente alcoolizado (frise-se), se dirigiu a mim e fez “Aperte a minha mão”. Nós já tínhamos percebido que ele queria “interagir” conosco, e não entraríamos naquela brincadeira. Segui reto, ignorando-o. Ele se pôs, então, à minha frente, interrompendo meu passo, e falou “Aperte minha mão, porra”. Eu disse que não o faria. Ele fez: “Por que você não vai apertar a minha mão?”, ao que lhe respondi “Por que apertaria? Eu nem lhe conheço”. Então, com o dedo em riste, me disse: “Você é um filho de uma puta, você é um filho de uma puta”. A este momento, meus amigos já estavam acompanhando o que estava acontecendo, bem como a mesa inteira dele, com o mesmo sorriso de deboche, como quem aguarda, como quem espera a legitimação do que virá.
Eu lhe disse, em resposta: “Beleza, campeão” e dei um aperto em seu ombro, uma batida confirmando a irrelevância de sua opinião. Neste momento ele me deu uma cotovelada e saiu de volta à mesa.
Eu senti o golpe, mas tinha plena consciência de vários pontos, até porque não tinha bebido até então: i) éramos três pessoas, diante de um grupo de dez pessoas; ii) a única coisa que ele queria era nos provocar, pra que eu fizesse aquilo, revidasse; e iii) me defender, ainda que legitimamente, seria justificar a violência pela mera violência. A um desconhecido, a alguém que nunca vi. Hoje, praticando kung fu, sei como fazer defesas pessoais, tenho condições de atingi-lo e responder, proporcionalmente, à ofensa que sofri. Mas de que adiantaria aquilo? Ainda colocaria em risco a integridade física dos meus dois amigos, que certamente seriam inseridos naquela confusão.
Caminhei em direção ao banheiro. Preocupado com que ele viesse atrás de mim, obviamente. Porém isto não aconteceu. Na realidade, como soube ao voltar à mesa, ele tinha ido até os meus amigos. Chamou-os de corruptos e de ladrões, dentre outras ofensas. Unicamente pela camisa que vestíamos. E, sim, levada ao último grau, essa é a mesmíssima lógica que legitima o estupro: a mulher sai com aquela roupa, então merece a agressão. Poderia ter me tornado uma estatística naquele momento.
Nem preciso comentar quão absurdo é ser ofendido fisicamente em razão de minha orientação política. Mas isto existe, é real, e está mais perto do que julguei possível. Enquanto pareciam notícias distantes da imprensa, eu protagonizei este episódio – e, sinceramente, poderia ter sido qualquer outra pessoa que estivesse ali, naquele lugar, porque não se tratava de mim, de quem sou, do que fiz ou faço, mas unicamente do que minha camisa representava. E a liberdade de expressão, pós-redemocratização, não pode ser rechaçada pelo discurso de ódio e, mais além, ser fulminada pelas vias de fato. Inaceitável.
Entretanto, isto não foi o pior. O dono do bar veio à nossa mesa. Perguntei a ele que medidas seriam tomadas. Ele disse que nada, que não tinha o que fazer. Eu lhe falei que eu, como cliente, tinha que ter segurança dentro do estabelecimento – um direito de qualquer consumidor. Ele riu, com deboche, e me disse que eu não tenho o direito de exigir dele segurança. Era pra exigir da minha candidata. E, então, me disse que a culpa era minha, por estar com aquela camisa “ridícula”, e que eu era ridículo por usá-la, por votar em quem votei. Afirmou que não queria conversa comigo, passando a me xingar e elevar a voz com outros termos, mais depreciativos, em frente às pessoas das outras mesas e meus amigos.
Na realidade, por eu votar em alguém diferente, eu poderia apanhar em seu bar. Ele, em verdade, justificou e legitimou a violência contra mim. Como algo merecido, pela minha orientação política. Imagine se eu tivesse reagido, entrado na briga, e dez pessoas fossem contra mim e meus dois amigos. Apanharia, certamente. E seria merecido, segundo o dono do lugar, que nada faria (intencionalmente) e sequer acredita ser uma obrigação sua prestar segurança aos seus clientes. Isto, sim, foi muito mais violento e agressivo, porque a ofensa vai muito além do físico. É uma lesão à minha integridade, à minha imagem, à minha honra, uma inferiorização da minha pessoa à minha concepção político-partidária, que legitimaria sofrer uma agressão. E, por óbvio, isto é inadmissível.
Não bastasse, mais de uma vez ouvi, em tom evidente de ameaça, que eu “não sabia com quem tava mexendo”. O que isto significa?
Compartilhar na minha rede social foi também ouvir outras experiências no mesmo estabelecimento. Um deles foi de uma amiga que, acompanhada de sua namorada, foi censurada pelo dono do bar, que lhe pediu para não se beijarem, para “preservar” o ambiente e seus clientes. E outro, por sua vez, de um argentino inferiorizado durante a transmissão de um jogo de futebol, por ser – simplesmente – argentino.
Por fim, é evidente que Narciso acha feio o que não é espelho. E trata com repúdio, deboche e escárnio. Legitima a violência, não apenas simbólica, mas física. A alteridade é o desafio de nossa sociedade e desta recente democracia. Durante este processo de conscientização, impõe-se uma postura firme diante de tais acontecimentos, não de resignação, mas de rebeldia, como forma de se afirmar diante de injustiças. Por isso compartilho o que experienciei nestas eleições, nesta “grande festa da democracia”. A partir da consciência deste relato, cabe a cada um se posicionar, não tenho intento de colonizar qualquer mente. Porém, trata-se de um lugar onde não me sinto à vontade para ser – exatamente – quem sou, nem meus amigos, logo, certamente não é um ambiente que posso frequentar. Aproprio-me da responsabilidade de meu posicionamento à luz da lógica do consumo, deixando de ir ao Jatobar. Outra postura, diante de tamanho desrespeito, significaria a anuência a uma postura face à qual não posso silenciar.