O nível do debate público de uma sociedade é a melhor medida de sua capacidade ou incapacidade, no nosso caso, de aprendizado político e moral. Nesse sentido, as eleições atuais mostram a precariedade e a indigência tanto de nossa inteligência coletiva quanto de nossa tibieza na ação. Para quem pensava que os setores conservadores da classe média haviam perdido a capacidade de decidir eleições majoritárias, pode, hoje em dia, aprender que a “regressão” a níveis de debate que pareciam superados é sempre possível dadas certas pré-condições e fatos novos. O fato novo é o que chamamos de “nova classe trabalhadora”, que estudamos em trabalho empírico e coletivo pioneiro de 2010. Essa nova classe ascendente, que inclui não só trabalhadores em sentido mais tradicional, mas, inclui, também, um sem número de autônomos que se acreditam “empresários de si mesmo”, se mostra suscetível as mesmas idéias que já faziam amplos setores da classe média estabelecida de tola.
É claro que falo da corrupção como o tema central da política brasileira. O ponto que nunca se discute quando se fala em corrupção apenas do Estado e de seus servidores, como é o caso no Brasil, é o modo pelo qual as classes médias e ascendentes que a apóiam são feitas de tolas. Na história da democracia e da política brasileira, a escolha política histórica que foi realizada no golpe de 1964 e aprofundada nos anos 90 de FHC de se criar uma sociedade para 20% da população com acesso a consumo e infra-estrutura, enquanto se condena os restantes 80% a uma sub vida, sempre foi justificada pela eficiência e virtude inatas do mercado por oposição ao Estado corrupto e ineficiente em si mesmo.
Na verdade, o mercado capitalista, aqui e em qualquer lugar, sempre foi uma forma de “corrupção organizada”, começando com o controle dos mais ricos acerca da própria definição de crime: criminoso passa a ser o funcionário do Estado ou o batedor de carteira pobre enquanto o especulador de Wall Street, que frauda balanços de empresas e países e arruína o acionista, embolsa, hoje mais que antes da crise, bônus milionários. Enquanto o primeiro vai para a cadeia, o segundo, que às vezes arrasa a economia de países inteiros, ganha foto na capa do “Time” como financista do ano. Quem é que ganha, na verdade, com a corrupção tornada legal do mercado e celebrada como mérito? É isso que o cidadão tornado tolo não vê. No Brasil, inclusive, a tolice é ainda muito pior do que em qualquer outro lugar. Nenhuma sociedade complexa é tão absurdamente desigual como a nossa na qual quase 70% do PIB é ganho de capital – lucro, juro, renda da terra ou aluguel – e estão concentrados nos 1% mais ricos da população. Por outro lado, só cerca de 30% cabe aos salários dos restantes 99%. Nas sociedades capitalistas mais dinâmicas da Europa, como França e Alemanha, essa relação é inversa. Nós, brasileiros, somos pelo menos o dobro mais otários que os europeus. Essa é a real vergonha nacional.
Mais tem muito mais. Essa transferência absurda de riqueza entre nós é realizada por serviços e mercadorias superfaturados – cobradas pelo mercado e não pelo Estado – com as taxas de juro e de lucro mais altas do mundo, que é cobrada pelos bancos e pelas indústrias cujos lucros e juros vão para o 1% mais rico. E quem são as classes cujos indivíduos são feitos de verdadeiros “otários”, senão aqueles das classes médias e trabalhadoras ascendentes que são quem consomem os carros com o dobro da taxa de lucro dos carros europeus; pagam taxas de juro estratosféricas para bancos em qualquer compra a prazo; e serviços de celular dos mais caros do mundo ainda que o serviço seja incomparavelmente pior. Quem é feito de tolo aqui? As classes médias e trabalhadoras ascendentes que defendem o Estado mínimo e o mercado máximo e que pagam preços máximos por produtos e serviços mínimos e de baixa qualidade a capitalistas que possuem monopólios para produzir mercadorias e serviços de segunda categoria. Essa é a corrupção invisível para os tolos e que nenhum jornal ou TV dos ricos mostra.
É essa “corrupção organizada” do mercado que “aparece” como milagre do mérito de capitalistas que na verdade herdaram o privilégio e nunca correram nenhum risco. E ainda, com esse dinheiro “extra” dos tolos, compram partidos políticos que defendem seus privilégios e jornais e redes de TVs que dizem todo dia que o problema nacional é a corrupção apenas no Estado, que é, pasme-se, o único lugar onde a corrupção ainda é visível como tal e tem algum controle.
Na verdade, toda classe que monopoliza os recursos que deveriam ser para todos, tem que fazer as todas as outras de tolas e transformar o interesse mais privado no mais público. Um banqueiro não pode dizer: pessoal, eu sou mais esperto e charmoso e quero de vocês uma contribuição eterna para meu bem estar! Ninguém é tão tolo para aceitar isso. Ele tem que dizer mais ou menos assim, pessoal, o mercado não anda bem e não é ainda mais justo porque tem um pessoal no Estado que rouba muito, como se houvesse alguma forma de corrupção sistemática no Estado que não fosse estimulada pelo mercado e como se o mercado não ajudasse apenas a quem já tem dinheiro a ficar ainda mais rico. Mas a tolice das classes médias e ascendentes que compram esse discurso como se fosse seu, não explica a raiva e o ódio ao uso do Estado – ainda que parcial e inconcluso – para os interesses da maioria esquecida da população brasileira.
Sem o adendo da “maldade” a tolice raivosa fica incompreensível. A raiva de quem se deixa fazer de otário pelos mais ricos só pode explicada pelas tentativas incipientes de se incluir mais gente no mercado como trabalhador e como consumidor. O Brasil de hoje ainda marginaliza 60% de sua população, mas, o Estado ousou aumentar o número de incluídos de 20% para 40%. É a raiva ancestral de uma sociedade escravocrata acostumada a um exército de servidores cordatos e humilhados que explica a tolice dos otários que compram a idéia absurda de mais mercado no pais do mercado mais injusto e concentrado do mundo. A raiva, no fundo, é contra o fato de que muitos desses esquecidos estarem agora competindo pelo espaço antes reservado à classe média, como vimos nos “rolezinhos”, nas reclamações dos aeroportos cheios e na perda dos valores de distinção com relação a “gentinha” não mais tão cordata e humilhada. Ninguém é tão otário para não perceber o óbvio, a exploração do mercado que ganha muito e dá pouco em troca, se “afetivamente” – que é onde se decide o mundo real – ele já não tiver garantido seu voto à continuação da humilhação e da desigualdade, nosso real “escândalo nacional”. É que isso garante ao otário que ele possa manter sua “distinção” e sua “distância” em relação aos esquecidos e humilhados. É isso que fez a classe média e pseudo-empresários ascendentes se tornarem “tropa de choque” de quem mais a exploram, como nas manifestações de junho passado. É também a razão de tanta tolice de quem defende hoje a cantilena absurda de “mais mercado” em um dos países mais injustos e de riqueza mais concentrada do mundo.
* Sobre o autor: Sociólogo. Atualmente professor titular de ciência política da Universidade Federal Fluminense (UFF). Autor de 23 livros, entre eles, Os batalhadores brasileiros: Nova classe média ou nova classe trabalhadora? (2012), A ralé brasileira: quem é e como vive (2009) e A Construção Social da Subcidadania (2006).