Search
Close this search box.

Marina, Malafaia e os espantalhos

Compartilhar conteúdo:

Arthur Schopenhauer, na obra “A arte de ter razão”, enumera alguns dos artifícios retóricos comumente utilizados para o triunfo em debates, mesmo que o vencedor não tenha um pingo de razão. O autor, em suas notas introdutórias, deixa claro que os lista no sentido de neutralizar eventuais estelionatários da razão que, até despretensiosamente, costumam lançar mão de alguns dos trinta e oito estratagemas retóricos que se propõe a analisar na obra.

Em episódio recente, o vulcânico Silas Malafaia foi surpreendido em um voo comercial por uma jovem que, no assento da frente, tirou um selfie enquadrando o pastor e sua esposa. Enquanto segurava a câmera com uma mão, empunhava com a outra um papel contendo os dizeres “abra sua mente, gay também é gente”, extraídos da música Robocop Gay, dos Mamonas Assassinas.

Em resposta, Malafaia – que no Twitter possui um pomposo séquito de quase oitocentas mil pessoas -, compartilhou nas redes sociais uma montagem na qual compara a conduta da jovem (que, na lógica malafaiana, teria agido com preconceito religioso) às ofensas racistas de Patrícia Moreira, torcedora gremista que xingou de macaco o goleiro Aranha, do Santos.

Malafaia, líder religioso conhecido por suas categóricas posições contrárias à agenda de realização de direitos da comunidade LGBT, acabou, em sua sanha fundamentalista, por equiparar uma postura notadamente crítica a atos de discriminação religiosa. Pior: para ele, tal conduta não teria qualquer diferença do delito de racismo, inafiançável e imprescritível.

Note-se que o pastor, ao conferir tal definição ao manifesto de sua companheira de voo, age em exata correspondência ao estratagema número três do filósofo prussiano: compreenda a afirmação de seu adversário em sentido diverso da que pretende e, em seguida, refute-a no sentido que lhe for melhor conveniente.

Ao alçar o ato da jovem à condição de “preconceito religioso”, o pastor induz, delirantemente, que bradar contra homossexuais se trata de um sacrossanto e intocável direito do qual se reveste o privilegiado segmento religioso que afirma representar. Em seus devaneios, as intenções da garota não seriam, obviamente, a de denunciar o verniz homofóbico da cotidiana negação de direitos do qual o sacerdote é cumplice, mas a de atentar, vejam vocês, contra a liberdade constitucional de credo.

Marina Silva, candidata à Presidência da República ungida por Malafaia no segundo turno que se avizinha, também vem com frequência lançando mão de expedientes retóricos dessa natureza. No debate promovido pela Band, ao ser questionada pelo candidato Levy Fidelix acerca dos entusiasmados apoios da banqueira Neca Setúbal e do megaempresário Guilherme Leal à sua campanha, a neo-pessebista, autoproclamada porta-bandeira do que chama de “nova política”, saiu-se com um petardo antológico: as indagações de Fidelix seriam fruto de seu preconceito com as elites, coisa impensável, afinal, seu companheiro Chico Mendes, líder sindicalista dos seringais assassinado por jagunços a mando de latifundiários, também comia dos caviares da herdeira do Itaú e do coproprietário da Natura.

Marina talvez não saiba, mas o fato de ter alargado o sentido de “elite” – que, no caso, referia-se evidentemente à econômico-financeira – para incluir Chico Mendes – não, ela não tinha esse direito… – no mesmo barco de Neca e Guilherme corresponde ao primeiro estratagema da obra em comento: leve a proposição do seu oponente além dos seus limites naturais, pois quanto mais geral for, mas fácil contrapô-la.

Em ambas as situações, é possível notar um ponto comum: a gritante incongruência das respostas com a realidade, beirando, até, à desonestidade. Afinal, é bastante conveniente rebater o que não foi dito, criando muitas vezes um espantalho que, diferentemente do sentido original das proposições refutadas, não tem como se defender. No caso de Malafaia, quem raios seria a favor de discriminações em razão do credo, posicionando-se contra o direito constitucional de liberdade religiosa?

Já Marina, em sua postura a-histórica e seu discurso difuso, optou deliberadamente por enodoar a imagem de Chico Mendes, mártir da luta em prol dos povos da floresta, para colher dividendos eleitorais na esteira da insensata afirmação de o problema do Brasil não está nas elites, mas na falta delas.

Em campanhas eleitorais há espaço para quase tudo, inclusive para toda sorte de contorcionismos hermenêuticos com vistas a escapar de situações vexatórias e perguntas constrangedoras. O próprio jogo político, contudo, se encarrega de deixar claro o caráter surreal de certas afirmações. Marina e Malafaia que o digam.