Por Ivenio Hermes
Modernos conceitos de Estado procuram destacar o papel social desse ente sustentado por tributos e pela sua fé de seu povo no cumprimento das responsabilidades estatais. Nesse campo de entendimento, ao Estado cabe ações que deem importância à dignidade da pessoa humana, respeitando, protegendo e promovendo direitos fundamentais, através da prestação de serviços públicos e da criação de investimentos sustentáveis que resultem no aumento da qualidade de vida de seu povo.
Não cabe mais nos dias atuais, um Estado que mantenha privilégios excessivos para seus políticos, fazendo-os viver num mundo idílico enquanto o povo, real motivo pelo qual estão ocupando cargos públicos eletivos, sentem o desequilíbrio da realidade na falta de saúde e educação de qualidade, e sofrendo com a violência de um país que possui, pelo menos, 56.337 vítimas de mortes violentas letais intencionais, número divulgado por um instituto de pesquisa, e que diverge frontalmente da divulgação feita pelos Estados, que contabilizam 50.339 cvli, isto é, 5.998 vidas que não possuem nem a chance de um esforço mínimo em se fazer justiça sobre suas mortes.
Sobre esses números tão discrepantes Carlos Madeiro do Portal UOL comentou:
A diferença é como se todos os crimes do Estado de São Paulo não tivessem existido. (…) A falta de padronização entre os Estados e a falha no preenchimento dos dados nas polícias podem pôr em xeque a qualidade dos dados divulgados como os oficiais pelos Estados, conforme fontes ouvidas pelo UOL.
Observa-se uma subnotificação de crimes cujo protagonista é o próprio Estado, que se vale do silêncio de desculpas para esconder a realidade da população, sendo que ela não pode ser escondida daqueles que se deparam com cenas de violência em seu cotidiano.
As diferenças na metodologia amputam qualquer possibilidade de geração de políticas públicas confiáveis para a redução da violência e da criminalidade, pois sem conhecimento correto da doença, como estabelecer qual remédio será usado? E na tentativa de usar qualquer medicação, como dosá-la para que não se transforme em veneno em caso de overdose? Ou fornecendo doses muito fracas, causar resistência no agente causador da doença social?
Embora muitos afirmem que a SENASP e o Ministério da Justiça não indiquem como deve ser feita a contagem, inclusive havendo divergência entre a SENASP e o MJ, existem diversos documentos que comprovam o contrário, e após a análise criteriosa de vários deles, percebe-se que isso é uma desculpa para não tratar corretamente o assunto, nem que para isso seja necessário a criação de uma Lei Federal que torne obrigatória o registro correto de CVLI, conforme “moldes definidos pela SENASP”, como afirmam Cappi, Guedes e Silva (2013 – pg 10):
Para isto, é premente a criação de Lei Federal que institua a obrigatoriedade do registro de CVLI, por todos os nossos Estados, nos moldes definidos pela Senasp, abrangendo todos os crimes que geram o resultado morte e que sejam produzidos de forma violenta, mesmo que decorram de latrocínio ou de confrontos entre policiais e criminosos.
A desculpa que os dados apresentados pelos Estados “são elaborados com contagens distintas, com fontes e objetivos diferentes” (MADEIRO, 2014) não pode ser aceita por um Estado que se diz alinhado aos direitos fundamentais, pois ele fere o cerne constitucional e os fundamentos sociais no qual o Estado Democrático de Direito está erguido. Não importa qual seja o nome, o que importa é a relevância da proteção à vida, um direito sacro e o bem maior que todos possuem.
O direito de ter sua vida preservada está vinculado à uma obrigação do Estado, que precisa suscitar meios para que esse direito seja amplamente respeitado, não adiantando fugir de sua responsabilidade pela ausência de uma diretriz. Sobre esse direito como bem social e de obrigatoriedade do Estado em sua ampla promoção, respeito e proteção, Novais, professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (2010, p. 264) nos diz:
A partir do momento que a Constituição consagra determinado direito, pretensão, dever ou obrigação como fundamental, ele impõe-se, ipso facto, à observância dos poderes constituídos. Então, a vinculatividade da respectiva observância não dependerá do tipo em que for classificado e integrado, do nome artificial que lhe for atribuído, mas apenas da força jurídica diferenciada que a Constituição lhe atribuir, da natureza material ou estrutural do dever, das características intrínsecas que o marcam, dos condicionamentos que se impõem, por natureza ou por força da observância dos princípios de Estado de Direito, à respectiva realização.
A apresentação de dados provenientes de modelos de contagens distintas e que não passem por uma filtragem analítica, é totalmente incompatível com a tentativa de se criar de um banco de dados unificado, que possa conter informações úteis para todo o sistema nacional de segurança pública, e ao continuar se desculpando com o argumento de que cada pesquisa possui fontes e objetivos diferentes, está se deixando de evitar que inúmeras vidas sejam ceifadas pela violência letal.
Diferentemente do que muitos gestores vêm sendo levados a crer, a experiência conquistada na pesquisa científica, aplicada aos conhecimentos de gestão pública, de segurança pública, do filtro para o tratamento de dados e nas inúmeras literaturas pesquisadas, nos convence de que a utilização de múltiplas fontes (metodologia multifonte) para geração de um banco de dados único e uniforme, é a forma ideal para se obter um panorama mais aproximado da realidade.
Assim a contagem de CVLI baseada na metodologia multifonte, consubstancia contribuições de vários órgãos do sistema de segurança:
- Os dados preliminares são obtidos das ocorrências, boletins, e informes aos Centros Integrados de Segurança Pública;
- Pela lista de cadáveres aliada à causa da morte, os Institutos de Polícia Científica fornecem dados extras ou comprobatórios;
- A Polícia Civil contribui com dados de inquéritos policiais;
A ideia central de não restringir-se aos dados de uma única fonte, está fundamentada no respeito aos Direitos Sociais, tratando a vida de cada ser humano com respeito igualitário, utilizando-se dos números para “o enfrentamento da violência letal”, sem mitos ocultos. Portanto, é quase desnecessário o debate sobre quais as mortes que devem ser contadas além das formas restritas do termo “homicídio”, conforme nos ilumina Sauret (2012, p. 36) ao dizer que:
“Homicídios perpetrados por cidadãos motivados por legítima defesa ou de terceiros; casos de estrito cumprimento do dever legal protagonizados por policiais ou homicídios/latrocínios cometidos por adolescentes, além de homicídios e latrocínios normais”.
Portanto, nenhuma informação pode ser desprezada na construção de um banco de dados dessa magnitude, e para tanto, os orgulhos institucionais e o corporativismo vicioso deve ser abandonado, e crimes que surgem do teatro real de operações policiais, precisam ser contados, não para apontar a culpa, que não é tarefa do pesquisador, mas para saber qual a face da violência que precisa ser trabalhada.
Fontes alternativas como sites e blogs de confiança, localizadores GPS para identificar estradas carroçáveis, locais ermos e outros logradouros não cartografados, enfim, toda fonte que possa ser credenciada e analisada sob um rígido processo de convalidação de dados, pode contribuir para a construção do saber científico e social, orientador de políticas públicas de segurança que possam surtir efeito e serem também mensuradas, para sua continuidade, descontinuidade ou aprimoramento.
A proteção aos Direitos Sociais, enquanto Direitos Fundamentais, não pode ser postergada. O respeito, a proteção e a promoção desses direitos, deve ser evidenciado “no dever de proteção na chamada sociedade de risco” (NOVAIS, 2010, p.59).
Homicídio ou CVLI, homicímetro ou Cvlímetro, são apenas termos que não justificam nenhuma omissão do Estado, nem tampouco se admite qualquer conceito de limite a observação concreta da dimensão que os crimes violentos letais intencionais estão tomando no Brasil. A necessidade da utilização de uma metodologia unificada é iminente, e sua determinação se dá não porque se quer divulgar falsos êxitos, ou fazer contagem de mortos, e sim porque as políticas de segurança pública devem ser pautadas na relevância da proteção à vida!
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SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é especialista em políticas e gestão em segurança pública e escritor ganhador do prêmio literário Tancredo Neves; colaborador e associado pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública; consultor de segurança pública da OAB/RN Mossoró; pesquisador da violência homicida no Rio Grande do Norte para o COEDHUCI/RN, e publica artigos com ênfase na área de criminologia, direitos humanos, direito e ensino policial.
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REFERÊNCIAS:
MADEIRO, Carlos. Total de mortes nos Estados é menor que o apresentado no Mapa da Violência. 2014. Disponível em: <https://db.tt/qmG3u7RF>. Acesso em: 18 jun. 2014.
CAPPI, Carlo Crispim Baiocchi; GUEDES, Flúvia Bezerra Bernardo; SILVA, Vinícius Teles da. Importância da Adoção de um Modelo Único de Contagem dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI). Conjuntura Econômica Goiana, Goiânia Go, v. 5, n. 27, p.103-113, dez. 2013. Mensal.
NOVAIS, Jorge Reis. Direitos Sociais: Teoria Jurídica dos Direitos Sociais enquanto Direitos Fundamentais. Coimbra – Portugal: Wolters Kluwer/coimbra Editora, 2010. 413 p.
SAURET, Gerard. Estatísticas pela vida: a coleta e a análise de informações criminais como instrumentos de enfrentamento da violência letal. Recife: Bagaço, 2014.
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DIREITOS AUTORAIS E REGRAS PARA REFERÊNCIAS:
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HERMES, Ivenio. Do Homicímetro ao Cvlímetro (Parte 2): A Relevância da Proteção à Vida. 2014. Disponível em: < http://j.mp/1tCIhME >. Publicado em: 22 ago. 2014