É muito importante irmos além da indignação quando nos deparamos com mais uma das horripilantes cenas de tragédia humana e das inomináveis violências cometidas no cotidiano. Pensemos no contexto em que os impulsos violentos são fomentados e qual a relação dos grupos humanos com o que consideramos agressividade.
Podemos observar, que, para uma sociedade que domestica para submissão, é fundamental o uso da coerção e poder das armas para manter a “ordem” e o cumprimento das leis. Muito comum, o resultado, ser o indivíduo que diz só fazer o “certo”, na vida em sociedade, por conta da vigilância e do medo da punição.
Estamos numa sociedade em que se acha bonito e comum, o lacaio que “obedeceu” porque estava com o chip na camisa e diante das câmeras por todo o tempo. Sabendo que se não houvesse tais explícitos dispositivos de controle, seguiria seus impulsos mais primitivos, apenas. Mas, esta mesma sociedade é incapaz de refletir sobre porque da falta de condição para o comprometimento espontâneo com o bem público e cidadania.
E este parece ser o indivíduo mais comum em nossa sociedade. Com freios morais e psíquicos cada vez mais frágeis, baixíssima capacidade de reflexão, parcas referências éticas/morais internalizadas e fácil adesão as demandas da cultura de massas, que o usa como ferramenta de reprodução e objeto descartável.
Daí surge importante reflexão sobre a relação entre moralidade, indivíduo e sociedade. Podemos refletir quem é o indivíduo comum que comete atos violentos, quais são suas motivações e principalmente como o mesmo administra seus impulsos agressivos. Indivíduo comum é aquele escolarizado (ou não), que trabalha, paga imposto, cristão, adora futebol, rico/pobre, cumpre horários e não tem desvios ou transtornos mentais.
São estes indivíduos que conduzem os grupos humanos, são estes que movimentam silenciosamente a cultura de massas, são estes que são o alimento da perspectiva homogeneizadora. Agem com frieza e indiferença a tudo (que o fizeram introjetar e assumir como discurso próprio) que é considerado diferente e não faz parte de seu “território”. Sem profundidade em tudo que faz, repete clichês feito papagaio e por motivações banais é capaz de dizer: “Tem mesmo é que matar!”.
Os torturadores (nazista ou policial contemporâneo) eram pessoas comuns, que logo após os atos de crueldade iam para casa ficar na companhia da esposa e dos filhos. Hannah Arendt (filósofa alemã) mencionava, em seu trabalho a banalidade do mal que parte de pessoas comuns, como no exemplo citado.
A vítima da banalidade do mal será o outro que inquieta com sua diferença. Inquietação que será projetada através da repulsa e hostilidade, que pode ser pelos motivos mais banais e imaginários que foram introjetados/cristalizados como uma verdade. Seja este outro judeu, gay, negro, pobre, palestino, cigano, estrangeiro, etc
Os conhecidos impérios criminosos que controlam os grupos humanos se alimentam destes rebanhos coisificados e fazem belamente sua manutenção. São as grandes corporações da mídia-entretenimento (alienação), religião (desespero), politicagem e as forças policiais que precisam justificar sua existência com a reprodução de uma sociedade violenta.
O ponto de reflexão são as violências cotidianas cometidas (seja física, psíquica ou moral), sem pudores, por pessoas comuns. Principalmente no que diz respeito a permanente dificuldade dos indivíduos e grupos humanos em lidar com a diferença. Uma inaptidão que jamais é assumida pelas sociedades e grupos humanos que procuram através da coerção e das armas manter a “ordem” desejada.
Sigmund Freud, nas primeiras décadas do século passado, ao assistir á adesão das massas aos regimes totalitários (principalmente nazi-fascismo), dizia não se espantar, sabia que as ditas pessoas comuns eram capazes de promover atrocidades inomináveis. E seu discípulo dissidente, Wilhelm Reich, contra-argumentava que o indivíduo violentado pela educação castradora, perdendo a condição de autoregulação energética, tornava-se violento e vulnerável ao controle autoritário, as coerções e punições.
Para poucos o diálogo continua a ser um recurso nobre e precioso ao lidar com a diferença, com inquietação causada pelo outro. Poucos também são aqueles que estão dispostos a assumir a própria condição precária para vida em grupo e saber administrar feridas narcísicas. As religiões, principalmente, fazem questão de dissimular esta imunda faceta dos indivíduos e grupos humanos.
Para finalizar, podemos dizer que diante de palavras bonitas e ilustrativas como “democracia”, “igualdade” percebe-se na prática cotidiana o prevalecer da “lei da matilha”, onde os mais fracos são massacrados ou simplesmente deixados para trás.. Que em muitos episódios os grupos humanos estão mais próximos de hordas tribais ou do contexto do belíssimo filme A guerra do Fogo (Jean-Jacques Annaud – 1981)