No último dia 12/07, a prisão de diversos cidadãos brasileiros, sob alegações e ilações no mínimo bastante questionáveis, escancara a naturalidade com que os poderes e o Estado brasileiro lançam mão de recursos e estratégias características de um estado de exceção. Entre os presos, estão professores, ativistas, servidores públicos, jornalistas, advogados, estudantes menores de idade. Muitos dentre eles foram detidos sem provas, sem direito à defesa ou com fortes indícios de flagrantes forjados. Mais ainda: pessoas sem nenhuma relação direta ou que mantinham relações ocasionais por compartilharem convicções políticas e ideológicas críticas à Copa do Mundo, ao governo estadual (RJ e SP) e federal foram enquadradas por “formação de quadrilha”! Presas porque, atentem para o tempo da conjugação verbal, iriam se manifestar violentamente ou incitar depredações e vandalismo num protesto que nem sequer ocorreu. Presas antes de cometerem concretamente qualquer ilícito. Essas pessoas foram não apenas presas, mas levadas para presídios onde algumas delas foram submetidas aos expedientes de controle e de normalização dos condenados – uniforme, raspar a cabeça.
Estamos diante de um fato greve em diversos sentidos. Como sociedade, não podemos aceitar nem tomar tal episódio com a naturalidade com a qual o poder agiu. É grave não por causa das pessoas envolvidas, ou simplesmente por causa dos expedientes discutíveis empregados, mas, sobretudo, pela mutação que revela e pela tendência que finca e desenha em nosso horizonte político, em especial no que se refere à relação entre Estado, indivíduo e sociedade civil.
A prisão de ativistas no Rio de Janeiro e São Paulo revela mais do que a criminalização dos movimentos sociais, esta é, na verdade, peça de uma mutação de maior monta, em que instrumentos e práticas de exceção adquirem, sem maiores temores quanto à reação crítica da esfera pública e da sociedade civil, ares de normalidade e generalidade abusiva. Em nome do controle e da prevenção contra possíveis transtornos políticos que por ventura possam comprometer ou ameaçar grandes e lucrativos eventos e personalidades importantes do status quo, os poderes deixam de lado todo o embaraço e discrição com que normalmente atuam, e, assim, assumem, com convicção e violência, aquilo que os caracterizam em larga medida: a força e a arbitrariedade.
Desse modo, a violação de direitos – no caso da prisão dos ativistas e militantes, direitos à manifestação, ao pensamento e à reunião – são suspensos e revogados sem a menor preocupação acerca da repercussão e visibilidade de tais atos. Nada de agir na surdina e sob o disfarce de generalidades, tudo é realizado à luz do dia, registrado e com relativa transparência. Um poder que não teme dizer seu nome e de se mostrar como tal – mesmo a irracionalidade é ostentada sem pudor. Sob o verniz do trabalho de “inteligência”, a polícia e justiça carioca arvoram-se, inclusive, a capacidade de prever o futuro, e, dessa maneira, evitar infrações e conspirações vindouras. As detenções não configuram, seguramente, prisão temporária, para a apuração, nem prisão preventiva, para assegurar o correto andamento e conclusão do processo quando o acusado implica riscos. Ora, submetidos a esse critério e a dita capacidade das autoridades em antecipar o futuro, quem de fato está livre de ser detido? É grotesco.
À bem da verdade, as violações e suspensões dos direitos individuais, assim como a arbitrariedade do aparelho de justiça e da polícia, não são uma novidade entre nós; formam antes parte de um padrão histórico de controle social exercido pelo Estado e suas instituições de poder sobre a sociedade brasileira, sobretudo sobre os “não-integráveis” e as camadas sociais oprimidas. As Manifestações de Junho e a Copa do Mundo apenas escancararam para todos esse padrão histórico de controle social em que práticas arbitrárias e truculentas extrajudicialmente e historicamente institucionalizadas passaram a ser, agora, assumidas sem maiores necessidades de justificação ideológica. Estão ali, prontas para ser registradas e filmadas por qualquer um.
Para retomar as formulações do filósofo político Giorgio Agamben, podemos afirmar que, nos últimos anos, a indiferenciação entre um poder soberano e arbitrário, capaz de medidas autoritárias e à revelia das garantias fundamentais através da declaração de um estado de sítio, e um poder constitucionalmente legal, que se apoia e defende essas garantias, cresceu e tornou-se bem mais visível e menos socialmente seletiva entre nós. Em outras palavras, a despeito de vivermos sob um regime democrático com uma das Constituições mais progressistas do mundo quanto às garantias fundamentais, medidas de um estado de exceção tem sido tomadas com maior frequência e naturalidade. Somente relacionado aos protestos de Junho de 2013 e à Copa do Mundo, tivemos violência policial, prisões arbitrárias sem mandados, desapropriações forçadas, convocações intimidatórias e preventivas para depoimento contra organizadores de movimentos sociais e protestos, monitoramentos eletrônicos etc.. Enquanto a força da lei e da exceção recaem duramente sobre os manifestantes, não vejo, nem de longe, o mesmo empenho em investigar, e, muito menos punir, policiais pelos excessos e arbitrariedades cometidos na repressão aos protestos.
Ao invés de medidas para uma situação extraordinária, lançadas mão em virtude de uma dada emergência, o que vemos em ascensão, e em processo de naturalização, no Brasil são as práticas de poder de exceção transformando-se em técnica de governo corrente na normalidade, como paradigma do exercício do poder e padrão de ação e administração do corpo social. A prisão dos ativistas deve ser entendida como mais um elemento no interior dessa dinâmica de normalização e naturalização da excepcionalidade e da cultura do controle cuja infantaria estatal tem sido as polícias e a justiça. A novidade, por assim dizer, reside no fato de que a sombra da excepcionalidade não é, de modo algum, hoje, um privilégio nefasto cujo peso somente os corpos dos criminosos e as camadas mais pobres sentem. A indistinção – de vários matizes – operada pelos poderes estatais da polícia e da justiça alarga o escopo dos sujeitos a serem submetidos e vigiados pelo controle social estatal.
As prisões dos ativistas e manifestantes revelam como a exceção enquanto técnica de governo pode ser utilizada para controlar e neutralizar protestos de rua, a organização de movimentos sociais e, também, as intervenções críticas de intelectuais. Isso é extremamente preocupante e hediondo porque, mais do que os corpos, é a vida política dos indivíduos que é trancafiada e cerceada em sua liberdade. Também a justiça, como uma instituição democrática e racional, se esvai quando abandona as clausulas pétrea e a análise cuidadosa dos fatos para se guiar com base em presunções, pré-noções e convicções políticas sobre os acusados.
Práticas de exceção asfixiam a vida democrática, pois elas minam duas das condições mais vitais de qualquer regime democrático pleno, as quais, entre nós, cidadãos brasileiros, foram tão recente e duramente reconquistadas, a saber: liberdade de crítica e manifestação e a garantia da integridade das vozes divergentes. Não importa se hoje não comungamos politicamente com os que sofrem com a excepcionalidade e a arbitrariedade das estruturas de poder do Estado, ou, mesmo se discordamos plenamente de suas convicções e táticas políticas, porque a exceção não é uma ideologia política ou de governo, é uma técnica de poder com a qual, no futuro, os que no presente afirmam nós, e não “eles”, podem ser o seu alvo. É preocupante o quanto, nos últimos tempos, temos naturalizado práticas e meios de exceção. Permitir que tais práticas se convertam em técnica de governo corrente pode nos conduzir por caminhos bastante conhecidos e perigosos, característicos de regimes oficialmente autoritários.
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Imagem: Leo Correa (AP) e Avaner Prado (Folha Press)