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Estado Nacional Brasileiro: Copa e Nacionalismo

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Um Ciclo Crítico em Quatro Estações

Por Vantiê Clínio (Cientista Político)

ABERTURA: No ano de 1500, para aumentar seu mercado produtor e consumidor, o reinado de Portugal envia tropas pelo Oceano Atlântico, para invadirem terras de onde a maioria dos seus primeiros habitantes – indígenas – seriam mortos, e negros seriam levados de outras terras para serem escravizados lá. Conta a história, que a primeira coisa que foi feita quando as tropas chegaram, foi apresentar um espetáculo, uma espécie de teatro com um homem se apresentando na frente e muitos outros em volta dele repetindo palavras, juntos e em voz alta. Essas terras onde – inicialmente – os índios seriam mortos em suas matas de cor verde (de onde uma espécie de árvore com um pigmento vermelho como brasa seria extraído até à sua quase completa extinção) e onde – posteriormente – os negros africanos trabalhariam como escravos, primeiro, nas plantações de cana de açúcar e depois nas minas de ouro de cor amarela, essas terras onde o primeiro ato desta tragédia foi a apresentação de um espetáculo chamado missa, essas terras, seriam chamadas de Brasil… E as cores da sua bandeira, seriam o verde que evoca as matas devastadas onde os índios foram mortos e o amarelo que evoca o ouro que foi daqui retirado com a exploração do trabalho escravo dos negros africanos (além do azul que evoca o céu sob o qual todos estes crimes seriam cometidos, e o branco que sugere um suposto “caráter pacífico” desta sociedade de raiz tão sanguinária)…

      Primeira Estação: No ano de 1970, o Brasil vive debaixo da sua última ditadura clássica (sob o governo militar/civil). Naquele ano, o país vive o seu “Milagre Econômico”: inflação equilibrada, aposta da indústria internacional (principalmente a automobilística), “pleno emprego” (porém, com salários baixos), aumento do consumismo (com destaque para a venda de aparelhos de televisão e de automóveis), aparecimento de uma classe média, construções monumentais (como a da Usina de Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo) etc. Naquele ano, o general presidente mais cruel da ditadura, Emílio Garrastazu Médici, ergue a taça Jules Rimet (diante das primeiras emissoras de televisão a transmitirem uma premiação mundial brasileira), junto com Carlos Alberto Torres, o capitão da seleção brasileira de futebol, que havia conquistado (no México), pela terceira vez, o título de campeã da Copa do Mundo. Tudo isto enquanto a ditadura prende, tortura e mata jovens que combatem contra o sistema, estigmatizando-os como baderneiros, terroristas etc. A propaganda oficial da ditadura militar naquele ano, repete a seguinte frase: “este é um país que vai pra frente”. Cinco meses depois da Copa, seria a vez de uma jovem de 22 anos, também estigmatizada como baderneira e terrorista, ser presa e investigada pelos militares, seu nome: Dilma Vana Rousseff…

  Segunda Estação: Em junho de 2013, após mais de doze anos de governo central do Partido dos Trabalhadores – o PT, eleito democraticamente – o Brasil vive um cenário de inflação equilibrada, aposta da indústria internacional (como a de tratamento de petróleo), aumento da oferta de trabalho (porém, com salários em torno da metade da média salarial dos países em desenvolvimento), aumento do consumismo (com destaque para o consumo de automóveis e produtos eletrônicos), crescimento da classe média, construções monumentais (como a da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, que será a segunda maior do país, depois da Hidrelétrica de Itaipu). O ex-presidente Luís Inácio da Silva (o “Lula”, do Partido dos Trabalhadores – PT), gosta de falar publicamente sobre este quadro, repetindo a frase: como “nunca antes na história deste país”. Na noite do 21 daquele mês de Junho, a presidente democraticamente eleita (para continuar o projeto iniciado no governo do ex-presidente Lula), senhora Dilma Vana Rousseff (PT), faz um discurso em cadeia nacional de rádio e televisão, para responder à maior onda de protestos da história do país, que vinha acontecendo durante todo aquele mês, tendo chegado ao seu ápice no dia anterior (dia 20), com a saída de milhões de pessoas para as ruas das grandes capitais e das pequenas cidades de todo o Brasil. Entre outras coisas, as pessoas protestavam pela diminuição dos preços das passagens dos transportes nas cidades, pela melhora dos sistemas de saúde e educação, contra os enormes gastos de dinheiro público (mais de 30 bilhões!) e as expulsões de milhares de famílias ocasionados pelas obras para a Copa do Mundo, contra a construção da Usina de Belo Monte (que está provocando muitas agressões a comunidades antigas – como comunidades de índios e de pescadores – e ao meio ambiente) e pela Democracia Direta – contra a farsa da democracia representativa. No discurso, entre outras coisas, a senhora Dilma Roussef diz que está “ouvindo” os manifestantes, lembra que os preços das passagens dos transportes já haviam baixado em muitas cidades, promete “importar” médicos de Cuba para melhorar o atendimento da saúde da população e também apresenta ao Congresso uma proposta para que cem por cento dos royalties das novas reservas de petróleo sejam investidos no sistema de educação. Sobre os enormes gastos de dinheiro público com a Copa do Mundo, em quase dez minutos de discurso, a presidente deixa apenas cerca de um minuto para falar, e diz que o dinheiro público estava sendo emprestado para os construtores das obras e que estes deveriam pagar depois, usando as construções para outras atividades lucrativas, após da Copa: mas, a presidente não diz nem em quanto tempo, nem em quantas parcelas os empréstimos seriam pagos… A presidente também “esquece” de falar sobre a Usina de Belo Monte… Na última semana de Junho e nos meses que se seguem, o Congresso aprova a proposta sobre os royalties do petróleo, com uma modificação (setenta e cinco por cento para a educação e vinte e cinco por cento para a saúde), milhares de profissionais cubanos entram no Brasil e… Os preços das passagens dos transportes voltam a aumentar em várias cidades, bem como moradores de comunidades pobres continuam a ser expulsos pelas obras da Copa… Em seu discurso de quase dez minutos, a Senhora Presidente Dilma Rousseff usa quase a metade deste tempo de fala para propor que as instituições democráticas sejam melhoradas – propõe uma nova constituição – e diz que “o povo brasileiro quer mais”… Democracia participativa, quando muitos manifestantes falam em Democracia Direta… Em quase toda a primeira metade do seu discurso, a Senhora Presidente Dilma Rousseff se dedica a estigmatizar os milhares de jovens manifestantes que faziam ataques contra as grandes propriedades capitalistas e do Estado, chamando-os de “vândalos” baderneiros (além de ameaçar, por trás das câmeras e microfones, com uma lei contra terroristas) e culpando-os pela violência nas manifestações, “esquecendo”, mais uma vez, que em praticamente todas as manifestações, as primeiras agressões sempre foram cometidas pelas polícias (que sempre agrediam AS PESSOAS)…

 Terceira Estação: de Junho de 2013 a Junho de 2014, um ano antes do início da Copa que será chamada oficialmente de “A copa das Copas”, se acelera a corrida para terminar a organização do espetáculo mundial e, assim, se aceleram as expulsões de moradores de comunidades pobres das áreas onde seriam construídas as “arenas” (250.000 pessoas foram expulsas das suas casas), assim como se intensificam os protestos (mesmo que apenas com alguns milhares de pessoas, e não mais com os números dos milhões de pessoas do Junho passado, pois muitos manifestantes “festivos” se acomodaram com as conquistas dos protestos de Junho e com as promessas do governo): protestos contra as expulsões de comunidades pobres e contra as revalidações dos aumentos das passagens dos transportes (uma verdadeira traição à população), junto com outras bandeiras de luta que se somam a estas bandeiras originais, como a do aumento de salários para várias classes de trabalhadores. Ao mesmo tempo, se intensificam, também, as violências das forças dos governos contra os manifestantes… São muitos os dramas vividos por comunidades urbanas pobres e manifestantes, devido às expulsões e repressões, durante estes doze meses… Aqui, vale a pena lembrar: a frase que simboliza o governo da Senhora Presidente Dilma Rousseff é “país rico é país sem pobreza”…

copaQuarta Estação: Em 12 de Junho de 2014, é realizado o primeiro jogo da Copa no Brasil. Neste mesmo dia, protestos acontecem em várias cidades do país e também dentro do Estádio da abertura: a presidente Dilma Rousseff e o presidente da FIFA – Joseph Blatter – são vaiados pela torcida de classe média (um ingresso para os jogos custa a metade do valor do salário mínimo do país). Dentro do campo, índios que participam das encenações de abertura abrem uma faixa pedindo a legalização de suas terras. Daí em diante, as doze cidades onde acontecerão os jogos da Copa vivem sob um verdadeiro Estado militar, com milhares de militares e policiais de todas as forças e organizações de espionagem demarcando, nos dias dos jogos, onde se pode passar e quem pode passar por onde, como também atacando violentamente manifestações pacíficas contra a Copa, prendendo, torturando e, em alguns casos, até atirando com munição letal… Ao lado de multidões de brasileiros e estrangeiros embriagados pelos jogos nos estádios, milhares de cidadãos brasileiros são desrespeitados nos seus direitos – garantidos pela constituição – de habitação, de livre organização, de manifestação, de expressão, de ir e vir e de garantia da segurança dos seus próprios corpos… Essa é a verdadeira cara daquilo que os manifestantes denominam de “A Copa das Tropas”…

 Fechamento: sabendo que a FIFA representa uma associação de alguns grandes grupos econômicos – megacorporações – que dominam o moderno mercado capitalista e, sabendo ainda que o moderno mercado capitalista configura-se também como um modo de viver (promovido, vale ressaltar, por quase todos os governos do mundo hoje – que são, assim, colaboradores das grandes corporações), podemos dizer, então, que desde a sua invasão/colonização e perpassando tanto os períodos de governos militares como os de governos civis, esse tem sido desde sempre um verdadeiro regime dominante e permanente em toda a história destas terras chamadas – pelos portugueses – de Brasil: a ditadura dos valores do mercado capitalista sobre todo e qualquer outro valor (inclusive o da vida, obviamente)! A partir desta compreensão, podemos perceber que, mesmo aquilo que foi oficialmente apresentado como sendo um dos maiores “avanços” implementados pelo sistema brasileiro, como parte das respostas às manifestações de Junho de 2013 – a lei que destina o investimento dos royalties do petróleo nas áreas da educação e da saúde -, no fim das contas, configura-se também como mais um mecanismo que visa atender fundamentalmente aos interesses e aos valores do mercado capitalista, pois sob a justificativa de um uso “humanizante” dos recursos oriundos das atividades da indústria petroleira, promove a legitimação do emprego desta forma de obtenção de energia (tão “querida”, p. ex., por aquela que há tanto tempo aposta no Brasil: a indústria automobilística), cujos riscos e danos reais – provocados pelo seu uso – para o equilíbrio do meio ambiente planetário (como o aquecimento global, p. ex.) não são compensados – nem minimamente – pela escolarização e cuidados médicos das futuras gerações que serão vítimas em potencial do iminente desastre ambiental planetário (lembremos ainda que hospitais universitários e universidades federais brasileiras estão sendo submetidos a políticas de terceirização de muitas das suas atividades, o que significa que muitos desses recursos públicos oriundos do petróleo beneficiarão, no final das contas, empresas privadas). E, do mesmo modo que a ditadura dos valores do mercado capitalista sobre todos os outros valores tem sido o regime dominante, perene em toda a história do Brasil, outro dado também tem sido recorrente nesta história: o uso – por parte dos grupos dominantes – do recurso aos espetáculos, para entreter e apaziguar os dominados, enquanto estes são submetidos à exploração, por parte daqueles. O cantor e compositor nordestino, Zé Ramalho, resume bem, em uma canção, o que vem acontecendo desde sempre com as populações brasileiras que consomem espetáculos, como o da Copa do mundo: “Vocês que fazem parte desta massa, que passa nos projetos do futuro, é duro tanto ter que caminhar, e dar, muito mais do que receber… ô, ô, ô, vida de gado, povo marcado, ê, povo feliz…” Porque “nunca antes na história desse país” (ao menos, desde o “Milagre Econômico” dos militares), nestes últimos doze meses – entre Junho de 2013 e Junho de 2014 -, se viu um mercado capitalista nacional tão promissor – com inflação equilibrada, aumento da oferta de trabalho com salários não muito altos em relação à média salarial dos países em desenvolvimento, aumento do consumismo, crescimento da classe média, construções monumentais -, bem como nunca se viu pelas telas das transmissões internacionais da Copa (nem na Copa dos militares) uma população com um perfil sócio econômico tão assemelhado aos das populações europeias de “países ricos, é, países sem pobreza” – ou seja, uma população majoritariamente de cor branca e de classe média, em que os indígenas e os “de cor” figuram, minoritariamente, apenas nos espaços reservados às encenações de respeito aos valores da igualdade e/ou da fraternidade (tais como os índios que, durante a abertura da Copa, abriram uma faixa dentro do campo, pedindo a legalização das suas terras).

Enfim, com o ex-sindicalista Luís Inácio “Lula” da Silva e sua sucessora, a “ex-guerrilheira” Dilma Vana Rousseff, este voltou a ser “um país que vai pra frente” – para o mercado capitalista moderno – e, para os jovens críticos do sistema, valem ainda as mesmas diretrizes sustentadas pelos governos militares dos quais o General Médici foi um dos representantes (e que levaram à estigmatização – como “baderneira” – e à prisão, da então jovem Dilma Rousseff): Brasil, “ame-o, ou deixe” as ruas sem protestar, mesmo que seja pela via da força e do aprisionamento! E vivas ao verde das mortes das matas (ou, das mortes das maltas), e ao amarelo das riquezas extraídas com trabalhos forçados (ou, do uso das forças do Estado para fazer “amarelarem” os trabalhadores revoltados por se sentirem aviltados)! Sob o azul de anil do seu céu, o branco da sua bandeira continua sendo manchado com o sangue dos mais fracos, em nome do desenvolvimento do mercado, como desde os seus primeiros tempos, quando os portugueses aqui chegaram, e violentaram primeiro índios, e depois negros, sob o ferro e o fogo da cor da árvore de cujo epíteto retirou-se o seu nome de batismo, “Brasil”! O verdadeiro Estado da sua “ordem” sempre foi o “progresso” do mercado, às custas de incontáveis vidas dizimadas em seu nome! E seja com reis, príncipes, ou presidentes militares ou civis, como um bom filho, sempre tens homenageado a esta verdadeira pátria que te pariu!