Por Diego José Fernandes
(Mestre em História e Professor de História)
Prática que vem se tornando cada vez mais corriqueira, os linchamentos ou justiçamentos coletivos fizeram mais uma vitima. E mais uma vez, esta também era inocente. No regime de justiça dessas práticas, o erro, a injustiça, também ocorre. O caso ocorreu no dia 25 de Julho, em São Paulo, com um jovem de 27 anos que, enquanto praticava sua costumeira atividade física, foi confundido com um ladrão que minutos antes acabara de assaltar um bar. Um grupo de mais ou menos 20 pessoas, baseando-se unicamente na acusação do dono do estabelecimento comercial roubado, partiu para cima de Andre Ribeiro, o jovem que teve sua corrida esportiva brutalmente interrompida. Após vários cuspes, socos e chutes, o linchamento coletivo foi interrompido pela presença de alguns bombeiros que passavam na hora pelo local. Não fossem os militares, Andre Ribeiro seria hoje mais uma vitima fatal da multidão que faz barbaramente “justiça com as próprias mãos”, em um nítido recuo civilizacional.
Além da agressão das pessoas, do comportamento nefasto dos indivíduos a desferirem covardemente golpes contra um homem indefeso, um fato peculiar nessa história chama a atenção. O rapaz atacado pela multidão era um professor de história da educação básica paulista. A profissão do homem surrado parece ser bastante significativa para pensarmos em algumas questões. Conforme indica os dados do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV/USP), alguns casos de linchamentos generalizados tiveram como vítimas indivíduos socialmente desfavorecidos. Mendigos, mulheres donas de casas, empregadas domésticas, pedreiros, office boys, homossexuais, soldados, entre outros grupos sociais, vez ou outra costumam ser, erroneamente, confundidas com bandidos que cometeram algum delito grave. No convívio social, elas aparentam ser mais suscetíveis de sofrerem alguma agressão verbal ou física. Contra tais indivíduos, simbolicamente desarmados, é mais fácil erguer a voz, apontar o dedo acusatório, imputar um delito, desferir um golpe e até praticar um linchamento.
Não é à toa que raramente (desconheço algum caso) um juiz, engenheiro ou médico sofre algum tipo de linchamento coletivo por ser confundido com um criminoso. A prática da “justiça com as próprias mãos” parece estar reservada para os homens e mulheres de classes baixas, para as pessoas cuja profissão não é socialmente valorizada. Em outras palavras, aos desclassificados sociais. Assim, é preciso ter uma certa desconfiança da tese, muita difundida nas redes sociais e por parcelas da imprensa, de que qualquer um pode ser confundido com um ladrão e acabar sendo justiçado por uma multidão ensandecida. Na verdade, para ser mais preciso, na nossa sociedade extremamente estratificada e desigual, determinada classe de pessoas está mais propensa a ser “confundida” e linchada pelos “justiceiros”. Há componentes sociais que precisam ser considerado. O risco não recair sobre todos indistintamente.
À esse grupo de pessoas socialmente desvalorizadas, parece vim se juntar a figura do professor, profissional que vive atualmente um processo intenso de desprestígio social. Na sociedade brasileira, nos últimos vinte anos, casos de agressão física a docentes tem sido cada vez mais comuns. O incidente ocorrido com José Maria de Oliveira, também professor de história, agredido por alunos da própria escola em que dava aula, após deixar a mesma, não é de modo algum um caso isolado (http://www.gcn.net.br/noticia/181264/franca/2012/08/PR0FESS0R-E-ESPANCAD0-P0R-ALUN0S-NA-SAIDA-DE-ESC0LA-181264), assim como o caso da professora de Mogi das Cruzes, que recebeu vários chutes de um aluno após pedir para este desligar o celular (http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/09/professora-e-agredida-apos-pedir-para-aluno-desligar-celular-em-sp.html). O projeto Ronda Escolar, adotado em várias cidades do Brasil, foi criado justamente para conter esses atos de violência na escola, em especial contra a figura do profissional de ensino. Eis a desprestigiada situação: o educador não é respeitado e valorizado nem na escola onde trabalha, avalie nos outros espaços sociais…
Embora Andre Ribeiro não tenha sido linchado por ser por professor, mas sim por ter sido confundido com um ladrão, o fato ocorrido se presta muito bem para uma discussão acerca do rebaixamento progressivo que a classe dos docentes da educação básica no Brasil vem sofrendo. Houve um tempo em que o professor, pelo seu jeito de se portar e de se comportar, era uma figura inconfundível, que dificilmente se confundia com outras classes profissionais e sociais. Andre Ribeiro foi justiçado, isto é, confundido com um criminoso e surrado em seu próprio bairro, em uma rua próxima à sua residência. Como explicar que ninguém do seu entorno residencial sabia que ele era um professor-trabalhador? Ocorre que hoje em dia a figura do professor, dado o seu processo de precarização (baixos salários, carga horária alta, baixa qualificação, péssimas condições de trabalho etc.) já quase não se distingue de um trabalhador de nível médio comum. Simbolicamente, no nível da aparência, do look, ele se assemelha com qualquer outra pessoa socialmente desprestigiada. O professor, por mais que aqui e acolá alguém louve sua validade, encontra-se hoje esvaziado de importância e reconhecimento social.
Sintomático desse processo ocorreu com André Ribeiro, que teve que dar uma “aula” sobre a Revolução Francesa para provar para os bombeiros que era mesmo um professor de história. Triste situação em que o único diferencial, o elemento distintivo do docente, é o conhecimento e nada mais. Representando um profissional socialmente desvalorizado, com pouco status, o jovem para ser desacorrentado precisou se valer da única coisa que lhe restava: o saber histórico. O conhecimento acumulado era o único elemento que podia atestar sua identidade profissional e lhe assegurar um pouco de estima.
Além dessa equalização das aparências, outro resultado do desprestígio social dos docentes é justamente a violência, seja essa simbólica ou física. Depois de provar que era um professor de história, Andre Ribeiro foi levado para um hospital, a fim de tratar dos graves ferimentos que o linchamento público que lhe causara. Em seguida, foi removido para uma delegacia, pois o dono do bar, mesmo sabendo que se tratava de um professor, manteve a acusação de que o jovem linchado era mesmo o ladrão que assaltara o estabelecimento comercial. Na mente do dono do bar, o fato de Andre Ribeiro ser professor não lhe assegurava inocência ou honestidade. Há cinquenta anos atrás, provavelmente asseguraria. Hoje não, pois já vai longe o tempo em que ensinar era sinônimo de idoneidade, integridade e retidão, bem como de respeito e estima social. Chegando à delegacia, o jovem docente, como era de se esperar, juntou-se por um dia em uma mesma cela com os presos. Não houve distinção para o professor, igualado com outros homens em um mesmo espaço. Mais uma vez, seu curso superior não fez nenhuma diferença. Triste tópico, o professor confundido, surrado, preso e desprestigiado.
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