Iaçonara Miranda de Albuquerque
(professora de língua portuguesa do IFRN)
(Nota preliminar: Iaçonara foi uma das responsáveis diretas pela criação, em mim, de um sentimento de cosmopolitismo, tendo em vista que permitia que eu acompanhasse suas aulas de português para os intercambistas no CEFET (atual IFRN). O contato com eles, além de informações variadas sobre o Brasil – muitas das quais eu não sabia -, me propiciou o desenvolvimento de uma consciência crítica quanto ao Brasil e os demais países. Acho extremamente oportuno que este texto seja publicado aqui na Carta Potiguar, pois xenofobia e preconceito não têm orientação política.)
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Meu pai dizia muito a frase “Esse foi à escola, mas a escola não foi a ele”, quando se deparava com algum “doutor” que tratava mal alguém gratuitamente ou não sabia se portar à mesa…
Já minha mãe, Joana Cavalcante Miranda de Albuquerque, reforça a importância da educação familiar a todo tempo, quando observa alguém que não teve a oportunidade de estudar, mas que é delicado, atencioso ou cuida da linguagem, dos modos, que se esforça para estar adequado à situação comunicativa. Quando estamos entre nós, ela elogia essa pessoa fazendo-nos atentar para tais atitudes. Lembro sempre de “Marião”, que trabalhou lá em casa dos meus pais e era um exemplo de quem teve pouco estudo, muita vontade de aprender e uma delicadeza no trato indiscutíveis, assim como das Luzinetes: uma que trabalhou em minha casa em Brasília e a outra que é meu anjo da guarda agora ajudando-me a pôr ordem no meu dia a dia.
Como professora, necessariamente lido com gente absolutamente todos os dias. Como professora de uma instituição federal que congrega estudantes de classes sociais distintas, convivo com alunos de origens sociais diferentes, o que muito me encanta. Tenho alunos que chegam em carros importados e outros que dependem da merenda escolar, da ajuda da Assistência Social para comprar os passes escolares, uns óculos… Isso me deu a oportunidade de confirmar as observações tanto do meu pai quanto da minha mãe.
Desde 1995, dou aula de Português como Segunda (ou Outra) Língua e, portanto, no meu fazer diário, lido com culturas diversas dentro do meu País, quer como professora anfitriã quer como Coordenadora que fui do Núcleo de Intercâmbio e, posteriormente, quando assumi a Assessoria de Relações Internacionais do IFRN, assim que criada, ou também ao assumir a coordenação da equipe de tradução do I Fórum Mundial de Educação Profissional e Tecnológica, SETEC/MEC, evento que recebeu lá em Brasília quase quinze mil participantes, entre eles, muitas autoridades nacionais e internacionais dessa área. Não basta ser proficiente linguisticamente, é preciso ter conhecimento interacional, já nos ensinou a teoria, e a vivência mostra como esse conhecimento é hiper importante. Diria mais: há que se ter sensibilidade cultural, ser observadora e, acima de tudo, evitar generalizar, estereotipar e, portanto, apoiar-se em preconceitos.
Uma das primeiras coisas que digo aos meus alunos intercambistas é que, durante o período que aqui ficarão, terão a oportunidade de vivenciar nossa cultura, de desfazer os estereótipos acerca do Brasil, de conhecer pessoas que, da mesma forma que nos países deles, têm boa ou má índole. Logo, terão uma oportunidade de construir conceitos a partir de suas próprias experiências e não repetir conceitos concebidos a priori do conhecimento, afinal não são papagaios para repetirem sem refletirem.
É verdade também que muitos colegas professores que não falam outro idioma têm “medo” de lidar com os “estrangeiros” (palavra que evito, visto que em sua raiz está a palavra “estranho” e também porque já me deparei com alunos cujos passaportes eram brasileiros, mas não falavam nenhuma palavra em português, como Marco Kjeldsen, Juliana Rabelo e Stencil Washington, filhos de brasileiros, mas que nunca tinham vindo ao Brasil, ou Maria, a sueca-brasileira que dominava a linguagem falada em nosso idioma que aprendera com sua mãe, brasileira, porém não a escrita). A forma de esses professores expressarem seu “medo” ou “intolerância” é ignorando a presença; é sempre se referindo a eles como os “gringos”, jamais pelo nome; ou por não tentarem ajudá-los a se socializar ou buscar ajuda conosco, colegas professores de outras línguas ou responsáveis pelo intercâmbio mais diretamente. Uma vez, em uma conversa com um colega que tivera um problema com um dos alunos intercambistas, ele insistia em usar expressões como o “gringo”, o “estrangeiro”, e eu o contrapunha dizendo: “O que tem o estudante, professor? O que aconteceu com o adolescente?” Interessante foi reencontrar esse colega depois e ele agradecer as minhas “correções” aos vocativos que usara para se referir ao aluno. Ele admitiu que o estudante não fizera nada que um dos nossos levados não faria ao refletir sobre a situação vivida. Que bom! Isso por si só já fez valer o intercâmbio, ao meu ver. Xenofobia? Há muito digo que brasileiro tem preconceito em assumir seu preconceito.
Procuro estudar com meus alunos, quer brasileiros quer estrangeiros, textos que provoquem discussões sobre o que há de bom e de ruim por aqui. Não gosto de textos ufanistas, nem muito menos derrotistas. Gosto de viajar, de experimentar comidas e, por isso, provoco meus alunos a conhecerem o Brasil e o mundo com todos os cinco sentidos, vivenciando e lendo criticamente, informando-se.
Os intercambistas dizem-me sempre que acham nossa bandeira linda, criativa. Amam quando explico o que significa cada cor, quer seja no senso comum, quer como foi concebida. Eles querem aprender nosso hino ou, ao menos, discuti-lo em uma aula. Várias turmas me pediram. Acham-no garboso, assim como eu.
A falta de respeito com o hino dos outros só me fez lembrar da vergonha de meus alunos austríacos, alemães e italianos que têm que eternamente responder acerca dos extremistas que tiveram como líderes. Lembro dos meus alunos americanos e do embaraço que demonstravam em ter Bush como líder na ocasião e comentavam sobre isso em nossas aulas. Eu e muitos brasileiros, posso afirmar categoricamente, temos vergonha dos maus anfitriões brasileiros que nos expuseram aos recentes vexames, dada à grosseria que fizeram nos estádios ao vaiarem o hino de uma nação irmã na latinidade, na história de exploração colonial, na vivência traumática com uma ditadura infame por que passamos. Poderia ter sido qualquer outra, a vergonha seria a mesma! Como receber alguém em “nossa” casa e espicaçar um símbolo de sua identidade? No mínimo, má educação. Como usar palavras chulas reverberadas publicamente? Esqueceram-se de quem era o público real e focaram só no alvo? Ingênuos? Prepotentes? Contudo não nos esqueçamos que a linguagem expõe seu enunciador, além da intenção comunicativa e tenhamos consciência do poder de divulgação dos “n” veículos comunicativos atuais que multiplicam e perpetuam imagens e sons!
O fato de nós, brasileiros, termos cantado nosso hino à capela, contrapondo-nos às imposições de tempo da FIFA não nos dá o direito de exclusividade sobre essa atitude! Quero crer, tentando ser generosa, que esses espectadores acharam que outros povos não tinham o direito de também se contraporem, cantando os seus hinos, inspirados na nossa atitude. Perderam/perdemos a oportunidade de curtir a autoria da “moda”! Engoliram/engolimos mosca! E se outros povos se inspirarem na vaia que demos e nos rechaçarem em suas “casas”? Gostaremos? Acharemos democrático? Encararemos com bom humor?
Quando oriento alunos brasileiros antes de irem para um intercâmbio, alerto para a necessidade de se portarem com dignidade em respeito a si mesmos primeiramente e para cuidarem da imagem do nosso país, pois facilmente generalizam o país através de atos individuais. Imagine se forem com o dinheiro público ou com uma bolsa de estudo! Gafe indubitável! Irresponsabilidade, para dizer pouco.
Como o preço dos ingressos para as partidas da Copa não deixa dúvida, a educação que falta àquele público é a de berço somada a uma incompetência linguística em outros idiomas, ao estudo de valores culturais e a uma educação escolar humanizadora.
Não tenho religião, mas gosto de vários trechos bíblicos e acrescento a esse meu desabafo a transcrição de um que acredito encaixar-se bem a essa situação: “Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem”. Lucas 23:34.
Acho que esses fatos grosseiros só fazem reforçar a importância dos professores de línguas segundas, sociologia, ética… e demais profissionais comprometidos com uma cultura de paz, na construção de um mundo melhor.
Numa recente interlocução acerca desse assunto, recebi as sábias palavras de uma amiga pedagoga, Valéria Barros Nunes, que também já fora professora de língua segunda e uma das pessoas mais afeitas às artes, às atividades culturais, de um senso crítico apurado com quem convivi em Brasília, quando lá tive a oportunidade de estar à disposição do MEC: “Tenho pensado muito nas diferentes manifestações e fico cada vez mais convencida que nos fez muito mal tantos anos de repressão aos grêmios estudantis e DCEs e ao movimento trabalhista. Temos toda uma geração que não sabe se manifestar e toda uma incoerência na maneira de manifestar. Mas não deixamos de ter o desejo de expressão, de manifestação, de fazer aparecer nossa presença de alguma maneira. Acho que ainda temos que trabalhar também essas linguagens nas nossas escolas, em casa com os filhos, nos nossos grupos de trabalho. E também precisamos insistir mais na ampliação dos canais de participação popular nas decisões políticas. Talvez, se as pessoas tivessem se sentindo parte da elaboração do evento ‘Copa’, parte da construção da vinda e permanência dos estudantes estrangeiros, parte da constituição da política contra os preconceitos, elas agissem diferente, com mais respeito”, disse ela. Essa fala reflete claramente o ponto de vista de alguém comprometido com um fazer democrático, participativo, politicamente consciente de seus atos e não de uma massa insana, inconsequente e de uma fatia social que se acha acima de tudo e de todos.
Dando continuidade à interlocução sobre a vaia e as palavras chulas, transcrevo parte da fala de Henrique Ramos, ex-aluno da então ETFRN, ex-intercambista em outro país, hoje arquiteto e que já ocupou cargos nacionais e internacionais em uma organização pioneira no intercâmbio educacional: “Também fiquei morto de vergonha… Mas na tentativa de manter o espírito positivo, acho que a Copa trouxe a oportunidade ímpar aos brasileiros do encontro entre culturas. Ainda somos um país muito pouco exposto à interculturalidade, apesar de nos acharmos muito ‘gente boa’ com os que aqui vêm nos visitar. Mas entre erros e acertos, temos em eventos como esse a oportunidade de usar essas experiências (algumas infelizmente bastante vexatórias) para amadurecermos como nação. Como você, tenho aversão a manifestações de extremos ufanistas ou autodepreciativas. Não tenho paciência. Nesse mar de textos jornalísticos tão ingênuos que tenho visto sobre ‘como os gringos estão adorando o Brasil da Copa’, seu texto é uma aula de lúcida interculturalidade.” Obrigada, Henrique, mas a sua fala foi que me provocou a acrescentar a este texto, que também me enojou o foco sexual com que a mídia hegemônica vem reportando a interação entre os povos aqui ou forçando situações burlescas. Isso digo sem temer nem um pouco ser acusada de uma pecha moralista, especialmente por ex-alunos que comigo conviveram e sabem de minha postura em relação à sexualidade. Que os de fora tenham visões estereotipadas de nós já é lastimável, porém compreensível, mas jornalistas brasileiros…? É muito para minha paciência! Muito se tem estudado acerca dos estereótipos, como surgem, como são construídos e quão difícil é a sua desconstrução. Brabo é ver a mídia massificadora cristalizando-os!
Outro aspecto interessante que podemos ter como um “legado da Copa” é a assunção da urgência na construção de uma política de educação linguística decente. Urge capacitarmos nossos cidadãos também em outros idiomas, pois além de isso abrir perspectivas de trabalho em outras partes do mundo, proporciona uma interação profícua entre os povos, uma troca de saberes, um maior respeito por nós mesmos e pelos outros. Ao se aprender uma nova língua, aprende-se também uma nova forma de pensar, de ver o mundo.
Enfim, a vaia e a linguagem chula fazem-nos pensar em nossa história de repressão, na necessidade premente em educar não só a grande população, mas também a essa classe mais abastada que tem dinheiro para comprar entradas para ver os jogos da copa ou viajar para o exterior para comprar alucinadamente lá fora, que admira o outro e denigre nosso país como se dele não fizesse parte, que fala da má educação do povão, mas não sabe se comportar com dignidade, que não tem vergonha de si mesma.
Nas arenas futebolísticas, vemos o outro, mas me parece que vemos também a nós mesmos, os nossos comportamentos coletivos num grande caldeirão que por si só já o é. Que temperos queremos para essa mistura é uma questão a se pensar.