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O Plano Nacional de Educação e o golpe do fundamentalismo sobre a diversidade

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 Pro_vida_pro_familia_Brasilia2014Nas últimas semanas de março, o conservadorismo fundamentalista, cada vez mais organizado politicamente no Brasil, logrou uma importante vitória em sua agenda política. E, desse modo, impôs uma dura e lamentável derrota sobre todos aqueles que lutam e aspiram pela construção de uma sociedade menos discriminatória, violenta e desigual. O lobby conservador e fundamentalista no congresso nacional conseguiu excluir do texto do novo Plano Nacional de Educação (PNE) os itens que enfatizavam, no combate às desigualdades educacionais, a “promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual”, substituindo-o por um genérico e vazio “promoção da cidadania e erradicação de todas as formas de discriminação”.

 Para os parlamentares contrários ao texto original do PNE, o trecho original, em especial os pontos à propósito de gênero e sexualidade, abririam caminho para novas tentativas de elaboração e distribuição de materiais escolares considerados “impróprios” pelo seu teor e papel na estimulação e incentivo da sexualidade e da homossexualidade. Seria mais um passo para a destruição da “família natural” (sic), afirmam.

PNE-625x326 O PNE, não custa lembrar, é um documento construído coletivamente através de conferências, e que mobiliza diferentes segmentos da sociedade com o objetivo de estabelecer as diretrizes e metas educacionais para os próximos dez anos. Entre as metas do Plano (2011-2020) em questão constam: alfabetização de todas as crianças até, no máximo, os 8 anos de idade, universalização do atendimento escolar para crianças, jovens e adultos, elevar o tempo de escolaridade média das populações do campo e das regiões menos favorecidas, igualar o tempo de escolaridade média entre negros e não-negros, duplicar o número de matrículas da educação profissional técnica de nível médio, destinar até o final do decênio 10% PIB para a educação pública, entre outros, num total de 20 metas.

 Impedir, no âmbito da escola, a discussão das questões políticas e culturais ligadas às relações desiguais e de opressão de raça, gênero e sexualidade, significa continuar a manter à margem das instituições, da esfera pública e da comunidade política da sociedade todo um conjunto de pessoas cujas aflições, estigmas e violações de direitos não são vistas nem tratadas como problemas relevantes. A recusa em qualificar e especificar que classes de pessoas precisam-se promover e incluir na cidadania e que formas de discriminação e violência devem-se combater e erradicar significa muito mais do que uma simples questão semântica em favor de um texto mais abrangente e geral. Essa recusa é, antes de qualquer coisa, uma negação de reconhecimento da especificidade da experiência de injustiça e desrespeito e o sofrimento social dessas pessoas. Nega-se não somente a identidade das pessoas, mas a própria legitimidade de suas vidas e direitos na medida em que recusa-se a reconhecer os riscos, as violações e opressões que elas enfrentam e, com isso, alimenta-se a exclusão social e a perda de autorrespeito, impedindo-as de atribuir valor social e ético as suas identidades, as suas capacidades e desejos.

 Os parlamentares que optaram pela supressão e alteração dos marcadores “raça”, “gênero” e “orientação sexual”, optaram também por não conferir realidade aos contornos e matizes dramáticos da injustiça e da desvalorização social que pesam, em larga medida, sobre a vida e os corpos dos negros, índios, mulheres, homossexuais, transexuais, travestis, enfim, a todo um conjunto de sujeitos marginalizados, estigmatizados e vulneráveis à ações de violência, discriminação e humilhação, inclusive na própria escola. É exatamente o reconhecimento dessa vulnerabilidade, a um só tempo física e política, que os deputados negaram atribuir relevância ou mesmo existência. Fomentar e legitimar a discussão sobre gênero e diversidade sexual na escola não se reduz nem trata apenas de contemplar e incluir novos conteúdos. Trata-se de estabelecer concepções morais sobre a plasticidade da vida afetiva, do gênero e das formas de conjugalidade familiar, assim como ideais e atitudes que valorizem e assegurem a legitimidade e liberdade de expressão dessa plasticidade inerente a vida, sobretudo numa sociedade plural.

 Somente assim uma sociedade pode conferir amparos éticos e suportes institucionais para identidades e corpos marcados pelo desamparo, pela desproteção e indiferença social, reconhecendo, desse modo, a existência, a injustiça e o peso das fragilidades que acometem e afeiçoam a vida, a autonomia e a livre expressão de mulheres, homossexuais e pessoas trans em uma sociedade denegadora de reconhecimento e intolerante como a nossa. Como escreveu a filósofa Judith Butler, há vidas que estão devidamente protegidas e amparadas e cujas exigências de inviolabilidade são não apenas reconhecidas e respeitadas como também capazes de mobilizar plenamente as forças e os instrumentos do direito, do estado e da opinião pública. Entretanto, existem outras vidas as quais não desfrutam de tal amparo e interesse público, vidas menosprezadas cujas agruras são ignoradas  e as agressões não comovem nem as perdas merecem luto.

 Sem essa dimensão normativa de reconhecimento da vulnerabilidade e da desigualdade de amparo e proteção quanto à expressão das identidades e dos modos de vida afetivo-sexuais, não há como a escola ou qualquer outra instituição constituir-se de fato como um espaço de combate e erradicação de preconceitos, estigmas e discriminações. Isso porque é nesse nível tácito, no gesto simbólico da criação de linguagens e valores que se institucionalizam na cultura e em documentos políticos que, como sustenta Butler, inicia-se o processo de humanizar vidas que até então não eram concebidas como ”humanas”, ou seja, como vidas que desfrutam cultural e legalmente de todos os marcos éticos, sentimentos morais e prerrogativas jurídico-políticas que as asseguram e legitimam em sua existência física, social e emocional numa sociedade. Não reconhecer a vulnerabilidade e a experiência de desrespeito e violações que vitimam as minorias sexuais é assumir a desresponsabilização coletiva em relação à agressões, injustiças e mortes cujas causas e raízes são coletivas, isto é, que implicam e derivam da própria sociedade em questão. Assim, continua-se a reforçar as causas subjetivas e culturais que fazem persistir as desigualdades e violências que marcam o país a esse respeito. O PNE e a escola podem ser precisamente as instâncias e espaços de reconhecimento, de tratamento e superação dessa vulnerabilidade e fragilidade. Lamentavelmente, temos setores da sociedade formado por partidos, políticos, bispos, pastores, teleevangelistas, juristas, entre outros, que lutam contrariamente.

 No que depender da bancada fundamentalista, a escola deve permanecer como um aparelho ideológico de suas crenças e valores particulares a despeito ou mesmo à revelia do estado laico, do secularismo ou mesmo se em razão disso as desigualdades, injustiças e relações de opressão e inferiorização social no espaço escolar continuam a persistir e agravar-se. O compromisso legítimo com sua fé e doutrina não podem, no entanto, ser o descompromisso com direitos fundamentais e a promoção de valores de estima, igualdade e respeito para com aqueles que, por conta da estigmatização e dos preconceitos sociais, são alijados dessas garantias. Ao suprimir a referência aos marcadores que tornam bastante visível os motivos pelas quais somente determinados grupos sofrem experiências de injustiça, de violência e de desigualdade por serem o que são, ou seja, em razão da sua cor de pele, de seu corpo e de seu desejo, os parlamentares prolongam e reforçam o trabalho de desumanização das vidas que deveriam ser humanizadas como sujeitos de direitos e de amparo ético. Desse modo, erguem-se mais e mais barreiras para que essas vidas e corpos continuem a não serem vistas em seu sofrimento e na iniquidade que padecem. Todo fundamentalismo é, em última análise, uma forma de praticar a desumanização do outro, uma recusa em aceitar o diferente nos marcos da legitimidade humana.

 Não é liberdade religiosa quando em nome de crenças particulares, muitas vezes fundadas em preconceitos e noções deturpadas e inconsistentes, investe-se contra os direitos dos outros e contra a afirmação pública da realidade da violência homofóbica e das relações desiguais de gênero enquanto questões dramáticas e urgentes na sociedade, isto é, que possuem duras e nefastas consequências sobre a vida de milhões de pessoas. Numa sociedade na qual, segundo pesquisas, ocorrem milhares de mortes todos os anos perpetradas por homofobia e machismo, não reconhecer isto como um problema que precisa ser tratado e combatido, ou, pior ainda, organizar-se politicamente para impedir e dificultar que a violência e desigualdade de gênero e sexual sejam reconhecidas como problemas públicos relevantes é mais do que uma afronta ao estado laico e um golpe sobre a democracia e em princípios constitucionais fundamentais. Dita atitude mostra o quanto esses parlamentares estão comprometidos com o direito à vida e à dignidade de determinadas pessoas, as quais, para eles, não cabem em seus valores nem no que entendem como “humano”.