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Cinqüenta anos de ditadura: revisitando Adorno, Bobbio e Lefort

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(Nota preliminar: deveria ter escrito este texto há mais tempo. Depois dos eventos que aconteceram ontem, é hora de saldar o débito. Vejo com bastante perigo não apenas a plataforma da direita – de uma certa direita – em retornar com a ditadura no Brasil, mas também de esquerdistas que cospem pra cima com a possibilidade desse retorno, bem como com avisos de outros esquerdistas. Está mais do que na hora de parar de jogar merda no ventilador, tá, gente?)

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Ontem foram realizadas diversas Marchas da Família com Deus pela Liberdade no País. Com as coisas do jeito que andam (a menor taxa de desemprego em onze anos, pressões cada vez maiores pela desmilitarização da polícia, luta pela legalização da maconha e aborto, luta pela emancipação feminina, negra – e indígena, não nos esqueçamos – e homossexual), alguém não está satisfeito. Está havendo uma perda cada vez maior dos privilégios, gente! Como é que o Brasil pode estar sendo desmoralizado desse jeito? A censura aumenta seus tentáculos sobre a liberdade de expressão; os comunistas, progressivamente, arrocham os nós da dominação institucional. Alguém tem que fazer alguma coisa! Os números das diversas marchas pelo País foram irrisórios, em comparação com seus antecedentes de cinquenta anos – 500 em São Paulo, 150 no Rio. Em Natal, nove pessoas (um estudante de medicina e oito militares) comparecem em frente à 24ª. Circunscrição de Serviço Militar em um ato simbólico por meia hora. Mas não nos enganemos: o primeiro passo é o mais difícil, mas já foi dado. (Na verdade, já foi dado desde que as manifestações grassaram pelo Brasil pra valer; mas o que importa mesmo é aproveitar um marco histórico crucial da história brasileira e fazer o impossível – reinstaurar o governo militar no País.)

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Em contrapartida, a esquerda está rindo à toa. “Nunca, na história desse País…” Bem, o Bolsa Família tirou uma parcela substancial da população da pobreza extrema (detalhe: o percentual de ocupação dos atendidos pelo programa é quase o mesmo da população em geral), as marchas por direitos emancipatórios acontecem direto, mais instâncias no Poder Executivo foram abertas para atender as demandas relacionadas a economia, direitos humanos e minorias. O grande problema é que, depois que a Marcha da Família – adeus! – aconteceu, ainda tem gente zombando do potencial simbólico e político desse ato. Teve um cara no grupo da UFRN no Facebook, inclusive, que escarneceu a declaração de um militar, segundo a qual a mulher e filhos não compareceram ao ato por medo de represálias. De acordo com esse estudante, a mulher e os filhos estariam com vergonha do chefe familiar. Aí, quando eu falei que dava a cara a tapa se ela não fosse pro ato em circunstâncias favoráveis (e até foram – não parece que os nove participantes tenham sido agredidos), ele treplicou que eu desse a cara a tapa lá, então. Quer dizer: temos alguém que está repetindo o gesto do conde de Afonso Celso, ufanando-se do próprio país. E a coisa mais imbecil que se pode fazer neste momento – seja pela direita, seja pela esquerda – é se ufanar: olham tanto pro alto que se esquecem dos buracos no chão. Depois não vão reclamar da queda.

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De onde vem tanto medo? Deveríamos ter medo de uns gatos pingados, sequiosos de recrudescer a desigualdade social, econômica e política no Brasil? Não. Tá bom, eu escrevo, sim, com minha dose de medo. Mas eu escrevo, acima de tudo, com a esperança de que setores da esquerda acenem para a lição de um filósofo alemão; espero, ainda, que eu não esteja só (e não estou – minha mãe me comentou comigo, um ou dois meses atrás, que também está com medo desse crescimento paulatino e persistente de setores conservadores da sociedade brasileira). Por muito tempo, recriminei Theodor Adorno por seu pessimismo político. Ele, ao contrário de outros colegas do Instituto de Pesquisa Social de Frankfurt (em especial Walter Benjamin e Herbert Marcuse), vislumbrava um futuro sombrio não apenas para a Alemanha nazista, mas para o mundo. Nesse ínterim, entretanto, não pude deixar de me lembrar de uma das notas que encerram a “Dialética do Esclarecimento” (escrita em parceria com Max Horkheimer). “Contra os que têm resposta para tudo” é o grande puxão de orelha dado pelo filósofo nos intelectuais alemães (destaque para os judeus) depois que o nazismo tomou o poder na República de Weimar. (Não posso deixar de me lembrar, também, de Alfred dando um puxão de orelha em Bruce Wayne em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”, quando o Coringa estava pintando e bordando em Gotham: eu te avisei.) O contexto? Inflação galáctica, altas taxas de desemprego, um sistema parlamentar que não deu certo. Hitler fracassou no putsch (redundância) de Munique, mas se aproveitou inteligentemente da conjuntura alemã e fez o estrago que fez. Enfim: chega de algaravia e vamos aos primeiros parágrafos do fragmento de Adorno:

“Uma das lições que a era hitlerista nos ensinou é a de como é estúpido ser inteligente. Quantos não foram os argumentos bem fundamentados com que os judeus negaram as chances de Hitler chegar ao poder, quando sua ascensão já estava clara como o dia! Tenho na lembrança uma conversa com um economista em que ele provava, com base nos interesses dos cervejeiros bávaros, a impossibilidade da uniformização da Alemanha. Depois, os inteligentes disseram que o fascismo era impossível no Ocidente. Os inteligentes sempre facilitaram as coisas para os bárbaros, porque são tão estúpidos. São os juízos bem informados e perspicazes, os prognósticos baseados na estatística e na experiência, as declarações começando com as palavras: ‘Afinal de contas, disso eu entendo’, são os statements conclusivos e sólidos que são falsos.

Hitler era contra o espírito e anti-humano. Mas há um espírito que é também anti-humano: sua marca é a superioridade bem informada.”

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Os sinais da estupidez estão claros como água: só não vê quem não quer. Direita e esquerda deveriam deixar de ser tão estúpidos e imputar a estupidez a apenas um deles. Estupidez NÃO tem orientação política, galera! A direita faz um alarde do cacete por causa da “censura à liberdade de expressão” e do “comunismo” (não bastasse ser de esquerda, ainda sou comunista – olha que legal), ao passo que a esquerda enche os peitos pra tirar onda da direita e abrir suas garrafas de cerveja (afinal de contas, champanhe é coisa de burguês). Vejamos, a título de exemplo, o papel da polícia. Sempre que há um protesto, viaturas acompanham e policiais se aglomeram. Qual é a diferença? Quando é a esquerda, a polícia baixa o pau na esquerda por algo que setores da direita e da esquerda fizeram; quando é a direita que protesta, aí a polícia vai lá pra proteger os participantes de ataques da esquerda. Talvez o exemplo seja muito simplista, mas precisamos ver alguns pontos: 1) alguém está faturando com a estupidez (embora, no fim das contas, a própria direita se beneficie desse faturamento, que pertence à polícia e a seus comandantes-em-chefe, os governadores); 2) a esquerda vive reclamando da polícia por excesso de truculência, e a direita pela falta. Além do mais, ainda há outro sintoma sobre o qual não há dúvida: depois de uma sessão solene CONTRA a ditadura, a Câmara dos Deputados permitiu que Jair Bolsonaro, direitista assumido, fizesse uma sessão EM LOUVOR da redentora, pra usar o famoso adjetivo de Stanislaw Ponte Preta. E quem permitiu? Um bando de deputados estúpidos, da esquerda e da direita, com o aval do governável potiguar Henrique Alves. Outra prova da estupidez: o culto da personalidade feito a Lula (pela esquerda, especialmente o PT e alguns setores aliados) e a Augusto Heleno (pela direita desejosa pelo retorno da ditadura). E aqui é hora de repetir uma frase de Thomas Sowell, economista liberal norte-americano (da qual, infelizmente, não consegui encontrar o contexto): “Como alguém consegue ler história e ainda acreditar em messias políticos está além de minha compreensão” (1). Sowell é um economista negro a serviço da elite branca nos Estados Unidos, mas o aviso nas entrelinhas não deve ser perdido de vista: não fique de quatro para os salvadores da pátria. E, finalmente, a estupidez em tempos de futebolismo. 2014 é o cinquentenário da ditadura, mas também é o ano da Copa do Mundo no Brasil. Devo lembrar do sucesso que a Copa de 70 trouxe para a propaganda política de Médici? Para minha sorte e de muita gente, Luciano Capistrano deixou seu recado aqui na Carta Potiguar.

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Qual é o remédio para a estupidez? O bom senso? A racionalidade? A razoabilidade? Nenhum deles se mostra eficaz, porque, na verdade, eles não remediam a estupidez; antes, ela se sai mais forte após sua aplicação. O que precisamos, diante da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, é de resistência e inventividade. A resistência já acontece há bastante tempo, e deu mostras de sua força numa contra-marcha, também em São Paulo, que reuniu mil membros, sendo portanto mais numerosa do que a marcha pela “redentora”. Mas a resistência pode se tornar resistente e empacar, a certa altura do campeonato, se os indivíduos não tiverem em mente também a capacidade de inventar novas formas de participação política. Um e outro se complementam e se reforçam; novas formas de resistência são inventadas de acordo com o contexto apropriado, ao mesmo tempo em que novas invenções podem retomar elementos de estratégias anteriores de resistência, conferindo-lhes um novo lugar nas estratégias que elabora. A esquerda precisa inventar um novo discurso, mais atento às tentativas de neutralização política da democracia, tanto da extrema-direita quanto da extrema-esquerda; a direita precisa parar de apelar a ditaduras pra garantir a liberdade que tanto prega em sua agenda política (principalmente os liberais) (2). Resistir e inventar são atitudes que devem ser assumidas permanentemente. Não podemos esperar pela ditadura pra que isso aconteça. Prova disso é a língua nos dentes com que deram direita e esquerda após a vitória de Micarla para a prefeitura de Natal José Agripino se afastou da ex-prefeita devido às alianças que ela contraiu com o PT. Mas a esquerda (ou melhor, o PT) fez ainda pior: permitiu que Fátima Bezerra se aliasse a Wilma de Faria e Garibaldi Filho, dois de seus tradicionais adversários. Deu no que deu. Não permitam que a ditadura volte e nos saqueie o direito de resistir e inventar.

(1)   Quando vi a frase, pela primeira vez, no perfil de um cara no Facebook (que deve ter me excluído por razões políticas), ela estava traduzida da seguinte forma: “Como alguém pode ler história e ainda confiar nos políticos?” Achei estranha a construção, não por Sowell ser de direita, mas por estar supostamente vomitando um discurso populista, igualmente presente na direita e na esquerda. Aí fui pesquisar na Internet e achei a citação original (embora sem saber ainda o devido contexto; aparentemente, deve ter sido alguma declaração dada por ocasião da eleição de Obama): “How anyone can read history and still believe in political messiahs is beyond me. The fact that it has become possible to graduate from even our most prestigious colleges and universities, still fundamentally ignorant of history, may have much to do with our electing a political messiah to the White House — for which we, our children and grandchildren will pay dearly”. O que, traduzido, quer dizer o seguinte:  “Como alguém consegue ler história e ainda acreditar em messias políticos está além de minha compreensão. O fato de que se tornou possível se formar, mesmo nas universidades e faculdades mais prestigiosas, ignorando da maneira mais básica até a história, pode ter muito a ver com a eleição de um messias político para a Casa Branca – pelo que nós, nossas filhos e netos pagaremos de bom grado”. Um liberal conseqüente com seu programa político não pode endossar a ditadura – a não ser que seja um liberal econômico e precise de uma ditadura pra garantir o livre mercado, que é o que setores liberais brasileiros estão querendo (e conseguiram, principalmente na época do milagre brasileiro). Liberais, desconfiem de seus irmãos liberais que pretendem tirar o Brasil do atoleiro com Joaquim Barbosa ou Augusto Heleno, senão vai acontecer com vocês o que aconteceu com a Folha de São Paulo: deram apoio ao golpe de 64 e voltaram atrás depois que a ditadura minou pra valer a liberdade de expressão.

(2)   Remeto o leitor para dois livros: “Direita e Esquerda: Razões e Significados de uma Distinção Política, de Norberto Bobbio, e “A Invenção Democrática: Os Limites da Dominação Totalitária”, de Claude Lefort.