Por Adson Kepler
A palavra japonesa “bushido” significa “caminho do guerreiro” e se constitui numa Ética ou caminho de vida para os antigos “samurai” (palavras japonesas não possuem grafia em plural). Nele a existência originalmente violenta dos samurai foi atenuada pela filosofia sábia e serena inspirada no confucionismo e no budismo.
O Bushido foi desenvolvido entre os séculos IX e XII e vários documentos históricos revelam sua influência na cultura japonesa.
Segundo essa filosofia o caminho do guerreiro é o caminho da espada, mas também o da “pena”. O conceito referido vem do antigo Japão Feudal e determinava que o guerreiro (bushi) dominasse tanto a arte da guerra quanto a leitura e que ele deve apreciar ambas as artes. O guerreiro deve aprender o caminho básico de todas as profissões, se informar sobre todos os assuntos, apreciar as artes e quando não estiver ocupado em suas obrigações militares, deverá estar sempre praticando algo, seja a leitura ou a escrita, armazenando em sua mente a história antiga, único parâmetro real para se evitar erros e repetir acertos, e o conhecimento geral, comportando-se bem a todo momento para ter uma postura digna de um samurai, tudo isso sem desviar do verdadeiro caminho, o Bushido.
Enquanto no Brasil a exigência da alfabetização dos policiais surgiu depois dos anos 50, no Japão a alfabetização de militares já é uma realidade há mil anos. Válido ressaltar que não por culpa dos policiais, mas da sociedade que assim desejou e aceitou, como até hoje se acomoda com tantas desvirtuações.
Diante da crise de valores morais do Mundo Ocidental, gerada pela dinâmica muito veloz de ruptura de falsos valores morais que geram pessimismo, niilismo e a desconfiança generalizada contra todo e qualquer tipo de valor moral, ainda que um valor verdadeiro e necessário, tudo isso propiciado e acelerado pela globalização e suas tecnologias comunicativas, defendemos que os valores do Mundo Oriental sejam integrados numa visão multicultural do Mundo.
Vemos que Oriente tem sido menos atingido pela crise de valores do Ocidente. O Japão possui seus problemas econômicos, mas menos problemas sociais que os Estados Unidos e Europa. Isso se dá por sua cultura milenar preservada naquilo que sempre teve de melhor.
É um erro pensar no multiculturalismo apenas no aspecto da tolerância, pois excesso de tolerância e relativismo prejudicam a sociedade. Toda tolerância e relativização deve ser refletida em busca da excelência. Aquele princípio do meio termo aristotélico entre os excessos ou vícios opostos que levam a excelência em todos aspectos éticos, como ensinado por ele na sua primeira obra Ética a Nicômacos. A ênfase do multiculturalismo ideal deve ser a a integração de valores benéficos e a aprendizagem sobre os maléficos, sem maniqueísmos. Não devemos nunca reduzir o multiculturalismo a uma simples luta cega por mais tolerância.
Disso tudo inferimos que uma solução para essa crise de valores, inclusive nas polícias e na Segurança Pública, é o resgate de valores que tendem a se constituir em universais, caso a sociedade os busque, os observe e os pratique. Em outras palavras, inserindo-os em sua cultura, o que inclui a cultura organizacional que pode e deve ser transformada pela inteligência organizacional das instituições policiais em seus respectivos setores de planejamento estratégico e gestão de projetos.
As sete virtudes dos samurai são: Justiça (na acepção oriental), Coragem, Compaixão, Polidez, Sinceridade, Honra e Lealdade.
Embora os significados em culturas tão diferentes possam ser diferenciados, mas a essência das sete virtudes devem ser difundidas e aplicadas por qualquer policial, pois todo policial deve ser um guerreiro a exemplo dos antigos samurai, preservada a realidade moderna.
O conceito de Justiça é amplo para a Humanidade, mas aqui importa a consciência de Justiça. Não revanchismo, mas uma busca do equilíbrio. Os orientais são mestres na busca do equilíbrio. Moralidade aqui não é moralismo, mas consciência de que todos devem objetivar o seu bem pessoal e familiar em harmonia com o bem comum, sem sobreposição de um bem sobre o outro e jamais prejudicando o próximo. Todos já devem ter ouvido ou lido algo semelhante vindo dos evangelhos. Todo policial deve ter a consciência que uma de suas missões é buscar essa consciência procurando agir sempre com Justiça.
A coragem é o que faz o guerreiro lutar com destemor e não se render a qualquer obstáculo. A derrota é quando nos rendemos, não quando perdemos lutando. A coragem do policial aqui está no sentido próximo a bravura, virtude ocidental que anda esquecida, inclusive nas polícias.
A compaixão é o que faz o verdadeiro policial guerreiro proteger inocentes, crianças e idosos, assim como não agredir pessoas já imobilizadas e desarmadas, independente do conhecimento de sua ficha criminal. Se um criminoso tiver que morrer numa ação policial deve ser através do uso legal e legítimo da força, conforme as leis de todo Mundo Civilizado. Mesmo as guerras mais violentas possuem seus códigos e normas internacionais, como a Convenção de Genebra, que podem levar a punição dos que não a observam nas Cortes Internacionais.
A polidez é outro problema grave nas polícias e um dos fatores mais relevantes que geram a antipatia da sociedade em desfavor das polícias. Embora a maioria dos policiais hoje tratem os cidadãos com urbanidade, até pela evolução da capacitação e nivelamento educacional superior, ainda pagamos pelo passado. Passado influenciado pelo coronelismo no Nordeste e caudilhismo no Sul, onde as polícias lidavam apenas com a parcela mais pobre e marginalizada da população e as pessoas da elite, honestas ou não, evitavam qualquer contato com elas, até mesmo para registrar uma simples ocorrência de perda de documento, recorrendo sempre aos órgãos superiores. Era um tempo onde a própria Justiça não permitia acesso aos hipossuficientes, não existia defensoria pública ou juizados especiais, principalmente em cidades do interior e áreas periféricas, como ainda hoje ocorre em alguns estados. Se a própria Justiça era elitista e excluía a maioria do povo, o que esperar das polícias então. Não culpemos os policiais por isso.
A sinceridade, por sua vez, é a busca pela verdade e transparência no serviço público, conforme apregoa a Constituição dos países civilizados, não somente evitar a simples mentira. Dizia Confúcio que a mentira só é perdoada quando em defesa do Estado (não de Governo), de nossa família e de nossa vida. Portanto mentir para o usuário do serviço público ou para os colegas e superiores não é a atitude esperada de um guerreiro policial. Se não tem o que falar ou não pode falar um guerreiro deve se calar, jamais mentir.
A honra e a glória se misturam no conceito oriental. Um policial que coloca em risco a própria vida para salvar a vida ou até o patrimônio de pessoas que sequer conhece sempre será honrado e seu ato glorificado. Nesse aspecto temos muitos exemplos valorosos, mas o que falta é a valoração da honradez e glória policial pelas instituições políticas e pela sociedade. A ação policial, boa ou ruim, tem sido banalizada. Quando existem premiações os critérios são subjetivos e ocultos ou claramente políticos.
A lealdade é o que deve mover o policial na suas relações com seus colegas e superiores. Aqui se inclui a lealdade com as leis, com a instituição e com os princípios que regem sua vida nela. Um guerreiro não está obrigado a dever lealdade a injustiças, ilegalidades, pois estariam contrariando o próprio Bushido. Porém, o respeito que se deve ter pelos colegas e superiores também não permite conspirações, conluios ou qualquer tipo de meio ilegítimo, imoral ou escuso de agir com pretexto de se corrigir injustiças. O mal se revela por si só e a prática constante do Bushido o anula de uma forma ou de outra.
São essas as breves considerações que gostaríamos de fazer sobre o Bushido e seu emprego na atividade policial. Se os benefícios são para todas profissões, de empresários a poetas, o Bushido não poderia deixar de servir de caminho aos guerreiros policiais.
_______________
SOBRE O AUTOR:
Adson Kepler é Delgado de Polícia Civil, Delegado-geral Adjunto de Polícia Civil, Especialista em Ética pelo Departamento de Filosofia da UFRN e Pensador.
_______________
DIREITOS AUTORAIS E REGRAS PARA REFERÊNCIAS:
É autorizada a reprodução do texto e das informações em todo ou em parte desde que respeitado o devido crédito ao(s) autor(es).
KEPLER, Adson. Bushido: o código dos samurais deveria ser aplicado a atividade policial? . Disponível em: < http://migre.me/imj1v >. Publicado em: 9 mar. 2014.