Existe uma velha máxima segunda a qual podemos medir o grau de “civilização” de uma sociedade ou Estado pelo tratamento que este dispensa aos seus infratores e presos. Creio que a fórmula serve também se aplicada ao tipo de tratamento dado aos professores. E, acrescento: para avaliar o quanto um Estado valoriza e zela pelo presente e futuro daqueles a quem ele representa e para os quais governa basta saber o quanto ele valoriza os seus professores. Sob esse ponto de vista, receio, continuamos distante, bem distante, e numa posição particularmente difícil para alcançar qualquer ideal de civilização consistente, especialmente no Rio Grande do Norte.
O tratamento estatal e midiático dispensado à greve dos professores e demais trabalhadores da Educação no Rio Grande do Norte é um triste e contundente exemplo desse quadro desolador. A maneira como o governo do estado, a secretaria de educação e a imprensa tradicional abordam e “dialogam” com os professores, seu sindicato e suas reivindicações somente explicita a violência, o abandono e o desprezo com os quais estes profissionais sofrem e lidam no cotidiano de seu ofício. Se tomarmos as condições de trabalho e de infraestrutura em que os professores exercem suas atividades, veremos esta verdade em toda sua crueza e naturalidade.
Ao acompanhar a cobertura midiática dos principais jornais da cidade, facilmente detectam-se os elementos comprometedores: a parcialidade nas matérias sobre as cadeiras e salas vazias, a disparidade nos tempos de entrevista entre os representantes do governo e da categoria, a quase que completa ausência da divulgação e publicização da pauta de reivindicações, das assembleias e das causas específicas da deflagração da greve atual, a falta de espaço para a intervenção e análise de especialistas em educação e política que promovessem um debate mais qualificado, etc.. Sob esses elementos, qual é, então a lição dada a população pela cobertura midiática? Responsabilização dos professores e reforço de um imaginário profundamente negativo e desqualificador dos docentes, qual seja, a ideia de estes fazem greve não por melhorias para educação em geral, portanto, para alunos e professores, mas por motivos partidários, egoístas ou simplesmente para não trabalharem e prolongarem as férias.
Dessa maneira, como se não bastasse os efeitos antagonistas da greve, a mídia fomenta e legitima a oposição entre alunos e professores e professores e sociedade, alimentando o sentimento de isolamento e não-reconhecimento de que padecem tais profissionais e contribuindo ainda mais para a desvalorização social dos educadores.
A despeito do tratamento interessado e unilateral da imprensa, cabe um questionamento aos professores e ao sindicato: ora, se já se sabe a postura que irá ser adotada pelos jornais, por que então insiste-se unicamente em estratégias que favorecem esse tipo de apreensão interessada e desqualificadora? Deixar de ocupar o chão da escola com atividades político-pedagógicas diferenciadas, como palestras, rodas de conversa, exibição de filmes, etc., e restringir-se a assembleias semanais e passeatas quinzenais somente facilita o trabalho de desqualificação e de isolamento da luta. Para muitos professores, infelizmente, a “luta política” limita-se a ir às assembleias para saber se a greve continua ou não. É preciso mudar essa cultura. Não se trata de descartar ou desacreditar a paralisação como instrumento político válido mas de complementá-la com outras modalidades de ação que tente trazer parte dos alunos e da comunidade escolar para o processo da luta sem deixar, ao menos parcialmente, de ocupar o espaço da escola sob outra programação. Qualquer ação política, sobretudo de educadores, jamais deve abrir mão de seu caráter pedagógico.
Retomando, desde o início da greve, o governo do estado e os secretários de educação, Betânia Ramalho e Joaquim de Oliveira (adjunto) adotaram uma postura hostil ao diálogo e ao dissenso. Eles não somente se recusaram em muitas ocasiões a negociar, como endossaram e atuaram, na imprensa, em favor da difamação do movimento e dos professores, rotulando como uma “greve eleitoreira e criminosa”. No decorrer da greve, além das ameaças sobre corte do ponto, a SEEC montou um verdadeiro cerco às escolas na caça aos professores grevistas, “solicitando” aos diretores, num verdadeiro assédio moral contra estes, os nomes dos docentes, sem pedir ou estar respaldado por decisão judicial a respeito da ilegalidade do movimento grevista. Por fim, quando as coisas caminhavam para ao seu término ou para um diálogo mais definitivo entre as partes, caiu sobre os professores o corte arbitrário de seus salários realizado sem a solicitação e declaração de ilegalidade da greve. Some-se, ainda, a agressão física contra um dirigente sindical na última caminhada até a SEEC, que recebeu os professores de portas fechadas e com forte aparato da polícia militar. Numa prova da arbitrariedade do estado e da secretaria, o Tribunal de Justiça acatou o pedido do Sindicato para devolução dos salários e proibiu o corte de ponto.
Este tem sido o tratamento que os professores em greve recebem dos poderes locais; onde deveria haver diálogo, reciprocidade, concessões mútuas e esclarecimento vigem ameaças, desqualificações, arbitrariedades, estigmas. Estado, gestores e jornais ensinam o desprezo pela educação na medida em que trabalham para deixá-la como está, desde que se tenha aulas, não importa a qualidade delas, a motivação de professores e alunos, a infraestrutura. Contudo, tal tratamento não é uma surpresa. A educação em nosso país continua a não ser um valor em si mesmo, nem para o Estado nem para a sociedade, apesar dos belos discursos generalistas. Ela não é sequer um meio para algum fim coletivo, um projeto de país, de sociedade democrática, progressista, cultivada, tecnologicamente avançada e autônoma. Mas isso é um assunto para outra análise. Voltemos ao modo arrogante, repressivo e desqualificador com que os poderes lidam com a atual greve.
Trate-se, com efeito, de um modo profundamente autoritário e violento de lidar com o contraditório, o dissenso e o conflito social, aspectos esses inevitáveis numa democracia. Em vez negociar e debater, ou seja, reconhecer o outro como sujeito de diálogo e de direito, Betânia Ramalho incorporou a figura do “técnico”, do “gestor técnico” que está acima da política e suas paixões, portanto, além das pessoas e suas vicissitudes, de suas insatisfações e demandas, somente os números, o conhecimento especializado e os dados importam. Ao longo da greve, suas declarações e reações sugerem e abrem precedentes perigosos e autoritários na relação do poder e do estado para com o dissenso e o conflito de interesses e, sobretudo, no tocante à direitos fundamentais, como o de reivindicação e greve. Uma gestão bem sucedida e competente não se faz apenas com “técnica”, mas com diálogo e abertura ao diferente e ao contraponto. Se um governo, ou pior ainda, uma secretária de educação, não consegue negociar e dialogar com profissionais que tem na palavra e no discurso sua mais importante ferramenta, com que outra categoria então tal governo conseguirá?
Nesse sentido, não são somente os professores, mas todos os trabalhadores e futuros trabalhadores que são colocados diante de perigos e retrocessos políticos e civilizatórios que convém não permitir, a fim de evitar a consolidação de um autoritarismo estatal.
Impedir e tentar retaliar a luta por direitos dos trabalhadores é um atentado contra o patrimônio de suor, sangue e lágrimas de gerações que doaram e arriscaram seus corpos num compromisso visceral de enfrentamento contra poderes abertamente muito mais arbitrários e violentos que os de hoje. Defender os direitos conquistados e já outorgados e reconhecidos pela justiça – e lutar por sua ampliação – é a mais simples homenagem que podemos prestar àqueles que lutaram antes de nós contra o Estado e a injustiça sem que, muitas vezes, pudessem gozar em vida do que conquistaram. Pelas razões acima é, portanto, intolerável qualquer ação do Estado que cerceie o engajamento na luta e na ação política.
E é exatamente isto, um cerceamento ao direito de lutar por respeito e ampliação dos direitos, o motor de qualquer democracia e progresso social, que nós, professores, estamos enfrentando. Nessa batalha, todos estão implicados de um modo ou de outro. O seu resultado terá necessariamente consequências presentes e futuras. O que muitos alunos precisam compreender é que o futuro de vocês não se constrói apenas com o que ocorre nas salas de aula, o que acontece fora delas, sobretudo, nas ruas e no enfrentamento político entre os trabalhadores e o Estado é fundamental para que este futuro ao qual vocês se preparam advenha numa sociedade livre, justa e democrática ao invés de uma sociedade autoritária, repressiva e injusta. Lembrem-se da máxima: “pode-se medir o grau de civilização de um país e o seu compromisso com o futuro pelo modo pelo qual ele trata os seus professores”.