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Black Blocs: Existe justificativa para a violência política?

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Por Leonardo Avritzer

(Cientista Político e Professor titular da UFMG)

Publicada na Carta Capital

imagesDesde junho de 2013, o Brasil tem vivido uma experiência inédita em sua história política recente: a apologia e uso da violência em atos e manifestações públicas vinda dos próprios manifestantes.

Ao mesmo tempo, assistimos pasmos a um aumento da violência em público sem precedentes: o incêndio de ônibus no Rio de Janeiro e em São Paulo, as expressões bárbaras de violência em alguns presídios no Maranhão, atos de violência no aniversário da cidade de São Paulo e em diversos episódios ligados ao esporte, como a partida que decretou a queda do Vasco da Gama para a Série B e as comemorações pela vitória do Cruzeiro no Brasileirão em Belo Horizonte. O rojão que matou o cinegrafista da TV Bandeirantes representa o ápice desta trajetória. Todos estes atos apontam a uma direção problemática que merece ser questionada: a profunda legitimação social da violência na sociedade brasileira.

Como sabemos, os principais episódios coletivos que marcaram a sociedade brasileira no final do século XX foram não violentos. As manifestações pela democracia durante o final do regime autoritário, as chamadas “Diretas Já”, assim como as manifestações pelo impeachment do ex-presidente Collor foram manifestações pacíficas sob o ponto de vista dos manifestantes.

Mesmo quando tomamos como exemplo o MST e a sua atuação recente no Brasil, a violência constitui uma dimensão complementar. Esta não é a atitude dos chamados “black blocs”, cujo centro da ação consiste na própria violência. Ou seja, a ideia por eles defendida é que a violência é o núcleo da sociedade (vide a página “black bloc Brasil”, no qual todos os posts são sobre violência). A pergunta que deve ser feita é: existe uma justificativa aceitável para a violência política?

Para responder a esta pergunta vale a pena distinguir entre desobediência civil e violência. O filósofo norte-americano Henry Thoreau, principal clássico da ideia de desobediência civil, a justificou de duas maneiras: em primeiro lugar, para Thoreau, o governo da maioria não pode significar que todas as formas de ação sejam decididas pela maioria e impliquem na obediência, especialmente porque não existe uma identidade entre maioria e verdade.

Outras concepções de política defendem o direito de se expressar ao largo das concepções da maioria no governo democrático. Assim, a minoria, quando não concorda com o governo, tem direito a não obedecê-lo. Mas Thoreau, um liberal quase anarquista, ia mais longe. Para ele, a única obrigação do indivíduo é assumir a suposição de que sua ação, em cada momento, está correta. Deste modo, Thoreau estabelece a possibilidade de que o indivíduo em uma democracia, por discordar das concepções da maioria, possa decidir não respeitar a normatividade vigente e desobedecê-la. A questão, no entanto, é a seguinte: quais meios são lícitos no processo de desobediência civil?

A questão da pacificação da política foi uma das grandes questões do século XX e recebeu respostas centradas no monopólio estatal do exercício da violência. O sociólogo alemão Norbert Elias ofereceu a resposta mais consistente igualando a possibilidade da política à pacificação do espaço público. Assim, a política não poderia ser exercida por meio da violência porque ela supõe a sua suspensão pelo Estado moderno. Não é possível afirmar que as sociedades democráticas formadas a partir da segunda metade do século XX seguiram a lógica pensada por Elias, mas é possível afirmar que presenciamos fortes elementos de pacificação da vida política se pensarmos nas manifestações de maio de 68, nas manifestações contra a guerra do Vietnã e nas recentes manifestações na Europa e nos Estados Unidos contra a crise econômica de 2008 até aqui. Todos estes movimentos foram amplamente pacíficos no sentido de não advogarem a violência e não fazerem a sua apologia.

As recentes manifestações no Brasil no mês de junho não seguiram este padrão e vale a pena se perguntar por quê. O Brasil tem o seu processo de formação marcado pela violência contra os setores populares e não foi capaz, nestes 100 anos de República, de pacificar o seu espaço político. Pelo contrário, os regimes autoritários que dominaram o século republicano só há pouco tempo saíram da cena política; estes se caracterizaram por uma ação policial fortemente violadora dos direitos humanos.

Nas últimas décadas o Brasil passou por grandes reformas democratizantes, mas, não por acaso, praticamente nada ocorreu em relação à diminuição da violência impetrada pela polícia em relação à população de baixa renda. Ela é presa sem acusação formal, sofre violência e casos como o do desaparecimento do pedreiro Amarildo ou do assassinato do menino Douglas são a marca registrada da política de segurança pública no Brasil.

Nas recentes manifestações, vimos a Polícia Militar atuar na repressão das manifestações com táticas claras de guerra, fazendo uma repressão indiscriminada. A tática usada contra os manifestantes, na verdade, foi uma derivação daquilo que é feito cotidianamente nas favelas das grandes cidades brasileiras. Assim, podemos afirmar que se a tese de Norbert Elias sobre a pacificação constitui uma idealização: ela também se aplica diferenciadamente para os diversos países. O Brasil ocupa, assim, uma posição de destaque entre aqueles que não foram capazes de pacificar o espaço público.

Neste contexto, obviamente, movimentos como os “black bloc” adquirem uma pseudo-legitimidade por contraste. São estas as justificativas que temos ouvido ao extremo nos últimos meses no Brasil: “se o Amarildo sumiu, então…” ou “Se a Polícia Militar do Rio reprimiu as professoras, então…”

Frases assim são equivocadas porque operam com dois pressupostos igualmente errados: de que não é possível controlar e pacificar a polícia ou de que a violência contra a polícia pode gerar algum benefício para a ordem democrática. Ambas as suposições são absolutamente equivocadas. O que está colocado no Brasil hoje é uma ampla democratização das polícias que viabilize a diminuição da violência contra os setores populares. Apenas assim o Estado brasileiro terá a capacidade de colocar na ordem do dia a diminuição da violência em todos os setores da vida social.