Um dos meus livros favoritos é “O Nome da Rosa“, de Umberto Eco. Se você não o leu (nem viu o filme), aviso que este texto vai andar no meio de spoilers que podem estragar sua experiência. Leia o livro primeiro. Se você fizer isso, provavelmente nem precisará ler este artigo depois.
Em “O Nome da Rosa”, em um determinado momento, há uma discussão entre o monge franciscano Guilherme (William, no original) e o beneditino Jorge. O conteúdo? O riso. Segundo Jorge, o riso “é um evento demoníaco que deforma as linhas do rosto e faz os homens parecerem macacos”.
Bem mais recentemente, o Deputado Federal Anderson Ferreira (PR-PE), membro da bancada evangélica da Câmara, ingressou com representação perante o Ministério Público de Pernambuco pedindo a abertura de inquérito civil contra o grupo de humoristas “Porta dos Fundos” em virtude do vídeo “Especial de Natal”, publicado no YouTube. O vídeo traz diversos esquetes com piadas com passagens da Bíblia, como Jesus e os discípulos tentando dar “carteirada” no restaurante para a Última Ceia e Deus, José e Maria tendo uma conversa um tanto “tensa” sobre relações conjugais. Assistam. É realmente engraçado. O fato é que o Deputado citado entendeu que o vídeo pratica escárnio e deboche contra a fé cristã e seus dogmas, merecendo ser tirado do ar e punidos os autores.
O douto parlamentar esquece, contudo, que ainda é vigente o direito à liberdade de expressão, inclusive artística, presente na Constituição. Certo que não é esse direito absoluto e ilimitado. Se comparado por exemplo com o âmbito de proteção que os tribunais norte-americanos conferem à Primeira Emenda à Constituição dos Estados Unidos, nosso direito de liberdade de expressão é até restrito. Eu convidaria o Deputado a assistir um episódio que seja da animação Family Guy para notar como é singelo o humor da Porta dos Fundos.
Na minha opinião, se a liberdade de expressão for proteger alguma coisa, deve proteger o humor. Este é o último recurso do oprimido contra o opressor: ao brincar contra o que se teme, diminui-se o temor e, portanto, a dominação. O Supremo Tribunal Federal já reconheceu que as restrições da lei eleitoral à personificação de candidatos por humoristas ou a referência jocosa aos mesmos é inconstitucional, por exemplo.
Em “O Nome da Rosa”, a trama gira em torno das mortes de vários monges beneditinos de um convento italiano que vão ser investigadas pelo franciscano Guilherme e o noviço Adso (que é também o narrador). Guilherme descobre que as mortes se deram em virtude do envenenamento das páginas de um livro escondido na biblioteca do mosteiro pelo monge Jorge. Quem o ousava ler, morria envenenado, como se houvesse uma maldição. Qual era o livro? Simplesmente o segundo livro da Poética de Aristóteles, dedicado à comédia. Quando questionado por Guilherme quanto ao motivo de tanto temor com relação ao livro, Jorge responde que é porque o livro “é de Aristóteles”, grande inspirador da escolástica cristã de São Tomás de Aquino. “O riso mata o temor, e sem temor não pode haver fé”.
Será que o Deputado Anderson considera a Porta dos Fundos o Aristóteles do século XXI?