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Quem tem medo do Livro Mau?

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A polêmica envolvendo o Dicionário Houaiss (Ed. Objetiva) abre espaço para diversas discussões. O Ministério Público Federal, guardião da ordem jurídica nacional, acusa o dicionário por racismo, alegando que uma das entradas do dicionário (a saber, a entrada “cigano”) fere a dignidade de um povo. Deixo o julgamento do mérito da questão para os juristas e especialistas ‒ que nesses casos sempre surgem dos locais sociais mais inesperados. Menos importante que ser contra ou a favor do pedido do promotor, proponho uma reflexão sobre o que são os dicionários: como, por quem, para quem e por que eles são escritos?

Os dicionários assumem o papel de detentores plenos do saber ortográfico, fonte de consulta incontestável em caso de dúvidas de grafia ou de significado das palavras. A maioria das pessoas que abre um dicionário não se questiona sobre a legitimidade das informações ali contidas por não imaginar que um dicionário é feito por outras pessoas, também humanas e também falíveis. Os lexicógrafos (aqueles que escrevem dicionários), trabalham incessantemente das 8h às 17h, fazem hora extra e estão sujeitos às mesmas intempéries cotidianas e intelectuais que eu e você, leitor.

Um dicionário raramente é escrito por uma só pessoa. Antônio Houaiss, filólogo de importância incontestável no mundo das letras, empresta seu nome e sua credibilidade à obra publicada pela Editora Objetiva, mas há muito tempo não opina ativamente sobre as definições que você lê. Depois da morte do filólogo, em 1999, nossa sociedade presenciou, entre tantas outras mudanças, um boom virtual e uma reforma ortográfica. E quem são os responsáveis por manter os dicionários atualizados?, peço que você se pergunte.

A equipe que trabalha para fazer um dicionário é bastante heterogênea. Há homens, mulheres, linguistas, editores – de texto e de arte –, especialistas, estagiários, diretores comerciais, direitos autorais, público-alvo, a moça do café, você que usa a língua e etc. etc. etc. Todos eles trabalham juntos na tentativa de registrar as acepções das palavras como você, leitor, as usa no dia a dia.

A equipe de redação é quem efetivamente coloca a mão na massa e escreve o que você lê. Como somos muitos, entre linguistas e estagiários, acabamos nos valendo de fórmulas relativamente fixas para elaborar uma definição. Caso contrário, você olharia para um dicionário e entenderia o real significado da expressão “o samba do crioulo doido” (ainda é legítimo eu usar essa expressão sem ofender ninguém?). Há prescrições sobre tudo: do limite de caracteres de uma entrada à ordem dos adjetivos que qualificam um mesmo substantivo, passando pela sequência de transitividade na apresentação de um verbo.

O manual de redação de um bom dicionário contém tantas fórmulas que faria um engenheiro duvidar de que aquilo possa ser categorizado como um material da área de Humanas. Tudo categorizado, classificado e hierarquizado para dar forma a um produto final harmônico que reflita os usos das palavras feitos dentro de um sistema linguístico. Ele é redigido para que os falantes possam conhecer usos que outros falantes fazem de uma mesma língua. Compilando usos, e não costumes, de falantes geograficamente apartados, o Pai dos Burros registra o ponto mais próximo que poderíamos chegar de uma ‘unidade linguística’ dentro de um tempo e de um espaço previamente determinados.

Um dicionário é um instantâneo sociolinguístico. Ao contrário do que parece estar no imaginário social, é uma obra temporal que registra um momento da língua. O primeiro dicionário da Língua Portuguesa*, publicado lá atrás no século XVIII, não daria conta de atender todas as necessidades de um falante hoje. (Se você quiser conferir, ele foi inteiramente digitalizado por alunos e professores da Universidade de São Paulo e pode ser consultado online no site do Instituto de Estudos Brasileiros)

Ao contrário do Ministério Público, guardião da ordem jurídica, um dicionário não é e não pode ter a pretensão de ser o guardião da ordem linguística, ou do “bom escrever” atemporal.  Quem escreve, assim como quem consulta um dicionário, deve estar ciente de que as definições ali apresentadas são um retrato de uma situação circunstancial e momentânea da língua. Assim como a língua, dicionários não são imutáveis. Eles, dicionários e língua, não são dádivas divinas universais. A mutabilidade é uma de suas características intrínsecas, parte integrante da obra que não pode ser vendida separadamente.

É certo que, nesse mito de sociedade racional, cientificista e neutra que vivemos, há de se pisar em ovos ao redigir definições potencialmente sensíveis e problemáticas. Tabus socioculturais serão, com certeza, também tabus linguísticos (Mas é a cultura que reflete a língua ou a língua que reflete a cultura?). É preciso consumir dicionários, ou qualquer outro produto mercadológico ou ideológico que te vendam por aí, com um pouco mais de juízo crítico. Todo produto fruto de trabalho humano reflete a opinião, os valores e as crenças de seu próprio criador, e não valores universais que devem ser acatados e digeridos da forma que te são empurrados goela abaixo.

Se você não concorda com o uso pejorativo de uma palavra, conteste o falante que a usa. Discuta, proponha alternativas. Perceba o preconceito no discurso do outro e levante sua voz contra ele. Pense e faça seus interlocutores pensarem junto com você. Somos nós, os falantes, que, com o uso que fazemos da língua, fornecemos a matéria-prima para o fazer lexicográfico. O dicionário não é preconceituoso. Preconceituosos somos nós.

* BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez e latino. 1712 – 1728.

Fonte da Imagem: Banco de Imagens do Google