Nem só da conversa fiada, da tagarelice e da exposição sistemática do “eu”, vivem as redes sociais. Elas alimentam-se também das polêmicas, quer as sérias quer as triviais. Assim que, nos últimos dias, o aplicativo Lulu ocupou o centro das atenções e tensões da ágora líquido-moderna, a internet. Trata-se da última novidade no mundo dos aplicativos de relacionamento em que as mulheres podem conferir notas e hashtags aos homens com quem elas saíram, sairiam ou desejam sair.
Como não poderia deixar de ser, o aplicativo gerou grande repercussão, dividindo as opiniões. Por um lado, ele foi saudado por algumas e alguns como “vingança feminista” (sic) e como instrumento sintomático da autonomia e da liberdade sexual da mulher contemporânea, e, por outro, foi alvo de críticas tais como a de que não passaria de um puro “machismo invertido”. De fato, por mais estranho que pareça, há muito coisa em debate em algo tão banal e superficial quanto o Lulu, de sorte que vale a pena parar e pensar. Vejamos.
A novidade causou alvoroço no universo masculino, não porque os homens se indignaram com o papel objetificador a que estão sendo reduzidos no aplicativo, mas, na verdade, em razão do medo e insegurança profunda que sentem perante a possibilidade de serem expostos diante… de outros homens. Isso mesmo para os outros homens. Ora, a autoimagem masculina de macho pegador, bom de cama, sedutor e bom namorado, que tantos homens se aferram, fingem e procuram transmitir se vê assim, com o Lulu, ameaçada, vulnerável, frágil, podendo, inclusive, como tudo mais na internet, se desfazer em segundos por conta de alguns cliques. A medida do autovalor de si, para os homens, é avaliada, sobretudo, pelas opiniões de outros homens, especialmente de amigos relativamente próximos. Daí a angústia masculina com o Lulu. Portanto, mais do que uma indignação política, é uma angústia narcísica o que está na raiz de dito alvoroço.
Deixemos esses exercícios psicanalíticos de lado. Há outro aspecto importante para discutir. Mas antes, uma pequena e importante ressalva. Particularmente, posso até entender o sentimento momentâneo de satisfação dos historicamente oprimidos e dominados quando os opressores e dominantes experimentam do mesmo veneno amargo com que, durante muito tempo, estes submeteram os primeiros. No entanto, este sentimento não pode ser a medida nem a meta, pois igualdade na dominação e na injustiça não é igualdade de fato, uma vez que não produz emancipação nem liberdade reais e efetivas. Equiparar as opressões de gênero ou inverter o sinal e os alvos significa manter intacta uma mesma estrutura de dominação, trocando tão somente os algozes e as vítimas, como se esta última fosse apenas um peça de teatro, um palco.
Ora, as relações de dominação de gênero são bem mais complexas e profundas do que uma visão dramatúrgica da realidade pode sugerir – afinal estamos nos referindo às estruturas simbólicas e sociais e a uma cultura em que as pessoas são socializadas e moldadas em seus pensamentos, formas de percepção e condutas. Com efeito, quem pensa que o Lulu é uma revanche feminista, não entende nada acerca dos objetivos políticos do feminismo. Pior: colaborar para distorção do ideário feminista, isto é, para o senso comum segundo o qual as feministas querem “ser homens”, acabar com os homens, etc..
Porém, finalmente, o principal aspecto que almejo trazer à tona neste debate é um elemento o qual li e vi muitos poucos levantarem em toda essa polêmica, qual seja: o quão estamos nos tornando racionais e racionalizando tudo, inclusive a vida amorosa e sexual. O aplicativo Lulu pode ser analisado como mais uma expressão dessa intelectualização da vida – no sentido weberiano do termo – íntima que, da psicologia aos livros de autoajuda e terapia, tem transformado nossa relação com os afetos e os sentimentos. A internet, por meio dos sites de relacionamentos e encontros, é mais uma peça nesse processo racionalizador.
A socióloga Eva Illouz é um das estudiosas do impacto da internet sobre as interações amorosas e a cultura do amor e dos relacionamentos conjugais. Em linhas gerais, Illouz sustenta que a internet e suas ferramentas promovem, no plano afetivo-amoroso, o “conhecer” como principal faculdade do desencadeamento da experiência de atração amorosa e sexual. Quer dizer, na internet, a organização da fantasia e dos afetos da atração amorosa depende de um processo intelectivo, apto a tratar e traduzir comportamentos, atributos e sentimentos na forma de dados, sinais e signos emitidos por perfis e trocados em interações textuais e visuais descorporificadas. Nestes sítios de relacionamento e em aplicativos como o Lulu, as pessoas são apreendidas como um conjunto de atributos, dados, notas; e, somente depois, elas podem ser apreendidas como corpo concreto e presença viva.
Em aplicativos como Lulu, o que está em jogo para enamorar-se por alguém não é, como apregoava o ideal romântico do século XIX, os imponderáveis do coração e a força avassaladora da paixão, senão atos e processos racionais e racionalizadores dedicados a sistematização acerca do que se quer a partir das informações e dos perfis disponíveis no mercado virtual das trocas amorosas. Aquela vontade irrefreável pela presença viva do outro e todas as sensações muito corpóreas geradas pelo corpo do outro em nosso corpo, tudo isso é suspenso e posto entre parênteses pela racionalidade reificante dos sites e aplicativos de relacionamento. O carisma, a empatia, o cheiro, os gestos, o brilho dos olhos, o silêncio intervalar, o calor ardente, a espontaneidade, e tudo mais que somente sentimos verdadeiramente na copresença de duas ou mais pessoas físicas, são substituídos por artifícios a só tempo simuladores, generalizantes e pretensamente individuais: avatares, fotos, perfis, emoticons, uma massa fragmentada de dados, imagens e informações incorpóreas. Em suma, a imaginação romântica é subsumida por um conhecimento essencialmente racional, visual e textual mobilizado para dar conta da projeção e dos simulacros que os outros e nós mesmos criamos sobre o outro e nossas expectativas afetivas e sexuais.
Outra dimensão relevante do Lulu consiste no papel desempenhado pela lógica do mercado no aplicativo. Esta última, em meio a guerra dos sexos que se criou, passou despercebida pelos analistas. No Lulu, a objetificação é geral, de todos os gêneros; uma objetificação mercadológica na qual uns são produtos e outros consumidoras. Afinal, trata-se de comparar as diferentes cotações e escolher o melhor “produto” ou, então, de maximizar o seu valor de mercado.
O que a internet tem nos revelado é que, nos assuntos afetivos, nos comportamos cada vez mais como se estivéssemos num mercado. É a racionalidade mercantil e a do consumidor, a eficiência e a procura do melhor negócio, que presidem as condutas afetivas e a escolha dos parceiros. O Lulu é mais um passo nesse vasto processo que intelectualiza, customiza e mercantiliza a vida íntima e despersonaliza os sentimentos. O resultado é que estamos todos no interior de um Eros eletrônico altamente objetificador e alienante.