Por Ivenio Hermes
A violência de gênero é um assunto que não pode deixar de ser analisado e abordado sob pontos de vistas além do da segurança pública, pois não somente precisa ser coibida como também necessita ser entendida de forma a ser evitada. Combater a agressão contra as mulheres e o feminicídio sem conhecer os fatores psicossociais que oportunizaram o crime é como tratar dos sintomas de uma doença sem dosar uma medicação correta para deter os causadores dela.
(Publicado originalmente no Jornal De Fato/Retratos do Oeste)
No Mapa da Violência 2013 são apresentados dados, que constroem um novo cenário onde conceitos arraigados ao sistema familiar, são determinantes no índice ascendente da taxa percentual de crescimento de agressões e feminicídios no país.
Entre os municípios com mais de 26 mil mulheres, Paragominas, no Pará, foi o primeiro colocado entre os 100 municípios com maior índice de feminicídio apresentados nos estudos de Waiselfisz (2012), contudo, o Nordeste possui 41% dos municípios com maior incidência em relação ao norte, cuja taxa é 8%.
As políticas de segurança pública adotadas com fundamentação apenas na repressão, não tem sido suficientes para deter esse aumento na violência contra a mulher. Afinal, esses crimes não foram cometidos de súbito, muitos deles tiveram como ponto inicial, como se percebe na tabela acima, as agressões domésticas que vem sendo toleradas dentro dos lares, que é uma violência validada por fatores econômicos e culturais.
No primeiro caso, a mulher se vê presa a uma relação nociva porque considera que não possui outra forma de sobrevivência sem os proventos do marido, e tolera os índices de abuso que extrapolam seu corpo e sua mente, em nome de manter o bem estar financeiro próprio e dos filhos. A tolerância somente é perceptível no âmbito externo da relação familiar quando os abusos atingem os filhos, reacendendo na mãe o senso protetor, que ela se nega, mas que exacerba na relação com os filhos.
No segundo caso, dentro da própria casa, a vitimização da mulher começa a se delinear pelas agressões oriundas dos próprios pais. Começa com a agressão materna continua com a paterna e migra para as relações conjugais, como podemos ver na afirmação de Waiselfisz (2012):
Os pais aparecem como os agressores quase exclusivos até os 9 anos de idade das mulheres, e na faixa dos 10 aos 14 anos, como os principais responsáveis pelas agressões. Nas idades iniciais, até os 4 anos, destaca-se sensivelmente a mãe. A partir dos 10 anos, prepondera a figura paterna como responsável pela agressão. Esse papel paterno vai sendo substituído progressivamente pelo cônjuge e/ou namorado. (WAISELFISZ, 2012, págs. 20 a 21)
O hábito de suportar essas agressões domésticas, concretiza-se numa violência velada, oriunda de familiares e pessoas ligadas por laços de afinidade, consistindo num importante dado para mensurar o cerne da desvalorização da mulher. Conviver forçadamente com pais agressores, poderá leva-las a reproduzir esse cenário em suas relações futuras, que as deixará sem capacidade de enxergar (cegueira relacional) certos problemas de relacionamento ou a se conformar com a atitude de namorados e cônjuges.
A situação cultural deixa mais patente, ainda que a subsistência da relação está diretamente ligada ao receio da não aceitação da falha, que vem acompanhada do machismo familiar que prega que o insucesso em impedir que uma relação termine é francamente atribuída à mulher, e nesse âmbito, valores familiares determinantes na composição da violência escondida entre as paredes de uma casa, inverte o juízo individual que a mulher possui de si própria. Guimarães (2007) nos apresenta o seguinte alerta sobre a anulação sofrida pela mulher habituada à violência velada e à cegueira relacional.
Nesse processo, a pessoa tira do seu campo de consciência uma parte da experiência e fica incapaz de sequer perceber essa falta, o que, por um lado assegura sua sobrevivência, mas por outro, a mantém presa ao ciclo relacional abusivo. GUIMARÃES (2007, pág. 481 e 482)
A entronização de um sentimento de empatia pelo seu agressor, causada pela confusão com o sentimento que ela possui, ou possuía, pelos pais, é também muitas vezes determinante para que a mulher se enclausure em sua dor.
O paradoxo estabelecido nessa cegueira relacional é a mulher, a real vítima de violência, carregar um sentimento de culpa pela própria violência sofrida em casa, se tornando possuidora de baixa autoestima, e estado inferior de condições em relação ao agressor e destituída de poder sobre sua própria vida, enquanto que o agressor ignora ou não possui sentimento de culpa, se considera mais ferido sentimentalmente e até se considera a vítima da relação, usando esse sentimento para justificar a agressão que ele causa, como vemos na afirmação de Guimarães (2007):
O agressor se sente vítima do comportamento da mulher ou dos filhos; teme a independência destes; não percebe o sentimento dos outros e nem consegue nomear sua insegurança, e por isso tem que controlar a ação destes e evitar a intervenção de terceiros na dinâmica de sua família. GUIMARÃES (2007, pág. 482)
Todas essas situações comentadas são fortes elementos para que a habituação com a violência velada resulte em seres humanos potencialmente cegos relacionais, que serão reiteradas pela tolerância cultural embutida nos ditados “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”, “ruim com ele pior sem ele” e “saiu de casa não volta mais” além de outros, transmutam a sociedade ideal onde os direitos igualitários são promovidos em uma sociedade machista e deturpada.
A segurança pública não alcançará sucesso pleno enquanto atuar isoladamente, pois não terá êxito ao se deparar com paradigmas culturais e comportamentais que precisam ser rompidos e recriados por ações multidisciplinares.
O sucesso no combate à violência contra a mulher, principalmente no combate ao feminicídio, reside nas ações preventivas que tenham alicerce na conscientização, no acompanhamento psicológico e social, no fortalecimento de valores familiares significativos que utilizem o diálogo como meio de entendimento, na andragogia como meio de reeducação e na educação, todos agindo concomitantemente com a segurança pública para inverter o processo de habituação com a agressão e de acabar com a tolerância cultural à esse tipo de violência.
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REFERÊNCIAS:
WAISELFISZ, Julio Jacobo. Mapa da Violência 2012: Caderno Complementar 1¹: Homicídio de Mulheres no Brasil. São Paulo: Instituto Sangari, 2012. 18 p.
GUIMARÃES, Fabrício; SILVA, Eduardo Chaves da, e MACIEL, Sérgio Alberto Bitencourt. Resenha: “mas ele diz que me ama…”: cegueira relacional e violência conjugal. Psic.: Teor. e Pesq.. 2007, vol.23, n.4, pp. 481-482. ISSN 0102-3772.
SILVA, Sérgio Gomes da. Preconceito e Discriminação: As Bases da Violência Contra a Mulher. Psicologia Ciência e Profissão, Rio de Janeiro, v. 10, n. 30, p.556-571, 10 mar. 2010. Anual.
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SOBRE O AUTOR:
Ivenio Hermes é Escritor Especialista em Políticas e Gestão em Segurança Pública e Ganhador de prêmio literário Tancredo Neves. Consultor de Segurança Pública da OAB/RN Mossoró. Integrante do Conselho Editorial e Colunista da Carta Potiguar. Colaborador e Associado Pleno do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.