Sexta-feira passada, dei um pulo na CIENTEC pra ver o movimento, as atrações… Assim que passo pela entrada que dá pra Praça Cívica do Campus, vejo uma galera se aglomerando em volta de um furgão. Olho mais atentamente e reconheço o veículo – era da InterTV. A aglomeração, por sua vez, era dos black blocs – gritavam palavras de ordem (!) que não consegui distinguir, e rapidamente cercaram o furgão, baixando a porrada e pichando. Um mesmo até lançou um molotov. Não havia segurança ostensiva por perto, e os profissionais da empresa só podiam aguardar que os black blocks passassem.
Após o tumulto, avistei um conhecido, que tinha interrompido os trabalhos na Rádio Sonora Experimental (projeto de extensão da UFRN, agrupando estudantes dos cursos de comunicação social da instituição – jornalismo, rádio e TV, publicidade e propaganda) devido à agressão dos black blocs. A viatura da InterTV estava postada a quatro ou cinco metros do estande da rádio (ambos do lado das escadas que levam ao palco da praça), o que justificava a interrupção: se os black blocs lograssem o objetivo, a viatura poderia mesmo explodir, atingindo todos os que estivessem em volta – já havia bastante gente passeando e/ou aguardando as atrações da CIENTEC. Ele lamentava, com alguma nostalgia, que as movimentações políticas de então não tinham tanto peso quanto as de anos atrás. Preferi me manter em silêncio na hora, porque achei o julgamento dele contra-intuitivo: oito ou nove anos atrás, não havia uma agenda de protestos tão intensa quanto a de 2011 até hoje.
Dois dias depois (um dia? Minha memória não ajuda), acabei me lembrando, de supetão, de um gesto de ousadia e escárnio do jornalista e cartunista Jaguar. Em 1970, trabalhando no Pasquim, Jaguar publicou uma montagem a partir do quadro “Independência ou Morte” (1888), de Pedro Américo. (Há suspeitas sobre a autenticidade do quadro, mas isso não vem bem ao caso agora.) Nela, Jaguar colocou um balão, próximo a D. Pedro I, com o seguinte dizer (extraído de uma canção de Érlon Chaves lançada no mesmo ano):
Devido a essa publicação, os editores do Pasquim ficaram presos durante dois meses (fora as outras prisões por motivos diversos que um ou outro jornalista sofreu ao longo do tempo do jornal) – ainda mais se nos lembrarmos que em 1968, enquanto o mundo fervia ao calor de greves e contracultura, Costa e Silva baixava o AI-5. Ou seja, todo cuidado é nenhum quando se trata de satirizar não apenas a ditadura, mas também o legado histórico que ela divulgava e pretendia defender! Mas que se lasque; a mensagem estava dada, e qualquer jornalista que apelasse para o humor, como fez a “patota” do Pasquim, precisava tomar cuidado com o espectro do humorismo a favor (que Millôr Fernandes denunciou anos mais tarde, durante as eleições de 84 a respeito de Tancredo Neves).
Divagações à parte, voltemos e misturemos tudo – os black blocs na CIENTEC, a pintura de Pedro Américo e a montagem de Jaguar. “Independência ou Morte” foi encomendada pela família real brasileira, numa conjuntura em que a pressão pela república estava em seu ponto máximo (fora, naturalmente, a proclamação que sobreveio em 1889). Além da acusação de plágio (de um quadro de 1807, “Friedland”, de Ernest Messonier), há que ver os elementos que a compõem – montaria (no quadro são cavalos; na época de D. Pedro I, os animais usados eram mulas e jumentos, que suportavam melhor grandes distâncias), uniforme (D. Pedro I e a comitiva não usavam uniformes de gala no anúncio da Independência), soldados (bem menos que no quadro) e a casa (seu primeiro registro é de 1884, e não se sabia se ela existia em 1808). Quer dizer, toda uma inflação moral, uma glorificação exagerada, uma lisonja desmedida – a serviço do poder político do Império brasileiro. A imagem – e toda a lisonja que a compõe, naturalmente – não deixou de ser reclamada, de modo implícito, pelo regime militar, quando da prisão de Jaguar e demais. Tooooooodo um estardalhaço, gente! Mas peraí: os black blocs, na CIENTEC, não estariam fazendo algo parecido, mesmo com uma visão oposta? O suposto alvo deles é a propriedade privada em suas mais variadas formas (no caso, a viatura da InterTV), mas eles simplesmente não atentaram (1) nem pro público em volta, nem pra estação do pessoal da Sonora. Eu não chegaria ao falso-moralismo de chamar ação direta de vandalismo, mas não tem como endossar a prática do depredamento sistemático em prol de um ideário político (nem mesmo se a violência desembocar, aliada a outros fatores, em um quadro geral de melhoria pros cidadãos). O imaginário que os black blocs evocam – ação direta, ausência de líderes, engajamento voluntário e anônimo – não me seduz, justamente por ser o reverso da moeda: como não traçar paralelos com as figuras do imperador e dos militares e sua necessidade de liderança, do engajamento pela força (alistamento militar obrigatório)? Suas agendas políticas são distintas, mas comum a elas se situa o extremismo. Em circunstâncias desiguais, mas por motivos diferentes, todos foram motivos de chacota – os black blocs na CIENTEC, vaiados pelos presentes, e o Império e a ditadura, satirizados pelo Pasquim. Antes de terminar, permitam-me uma apropriação (completamente vagabunda, faço questão de frisar) da estratégia de Jaguar sobre uma foto de Nathalia Campero e soltar minha graça:
E não, não quero mocotó.
(1) Modo de dizer: é claro que atentaram, mas levaram a ação até o fim.
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