Bem-vindo a sociedade do espetáculo, condicionada para vigiar e punir, com total falta de percepção crítica do entorno o qual estamos inseridos. Bem vindo a nossa própria crueldade.
Dia 09/out, o artista João Pedro Tavares realizou uma performance nas ruas do bairro Ribeira, em Natal/RN intitulada “Propriedade do Estado: Mídia de extermínio”.
A performance trabalha com diversos eixos temáticos circundantes não apenas nesse período, mas de muitas décadas no RN e no Brasil, entre muitos fluxos o foco voltou-se essencialmente para as ações dos grupos de extermínio. Esse ano a operação Hecatombe da polícia federal acabou desarticulando grupos de extermínio no Rio Grande do Norte que são movidos por diversos motivos, entre tantos, as disputas por pontos de vendas de drogas, queima de arquivos, encomenda mediante pagamento em dinheiro ou até mesmo de forma arbitraria por discussões (Veja notícia).
Eles ainda existem, nós sabemos, todos sabem. Não temos expostos suas vítimas constantemente nos jornais locais porque estes estão muito preocupados em criminalizar favelas, comunidades e outras minorias. Os jornais hegemônicos potiguares estão ocupados em apontar a terrível vida da comunidade e expor como a polícia age corretamente mesmo quando atiram a esmo em uma manifestação e não dialogam com os sujeitos da ação. Essa pauta, é censurada. Existem outros focos para trabalhar, sendo todos voltados para uma estreita manipulação de opinião pública visando controle social.
Era aproximadamente 13 horas quando o artista foi levado com cordas nas mãos para um poste em um dos cruzamentos da Ribeira e presos com outros arrames ao redor, com sangue sintético, ele foi deixado sozinho embaixo do sol, impotente e descalço, apenas com um letreiro nas costas: vítima de extermínio. Sabendo que não seria retirado do lugar, começou a pedir ajuda as pessoas que passavam dizendo que tinha sido vítima, que estava ali inocentemente, que nada fez. As pessoas – abismadas por ter sua rotina cotidiana interrompida com aquele acontecimento, começam a parar para entender o que está acontecendo. Espalhados entre essas, consegue-se ouvir: “ajude o rapaz ali!”, “por que esse moço está preso?”, “ele está sangrando?”, “chame a polícia”, uma das artistas (Camila Guerra) que caminhava normalmente entre o público ilustra essa atitude:
“Andei pelo cruzamento como se não soubesse do que se tratava a intervenção e abordei um cara – que inclusive mostrava uma postura segura complementada também por seu físico de anos de academia – e perguntei a ele se ele poderia soltar o “cara que tava preso no poste”, e ele me respondeu “não, quero me meter não porque vai que foi a polícia que prendeu, né..”… Engraçado analisar essa fala porque em momento algum um policial apareceu para vigiar ou intervir naquele espaço (alguns só passaram de carro mas sem dar muita atenção). Aí podemos parar e pensar: nossa, o policial, muitas vezes, tá dentro das nossas mentes, instaurado pela política do MEDO! Podemos dizer que o Estado lhe mostra opções possíveis de caminhos a serem seguidos, mas seus “cães” lhe obrigam a seguir o que o Estado acha melhor (e não pra você).”
Com a familiaridade da situação (30 minutos depois do artista preso), alguns se aproximam e… Filmam, tiram fotos.
Alguns que apenas passavam no sinal, param rapidamente e continuam seu percurso. Provocações que acentuam o desconhecimento e preconceito devido a criminalização partem do grupo de apoio ao artista e são lançadas, como gritos que dizem: “bandido bom é bandido morto!”, “se meteu com polícia negrinho? Alguém vai sofrer no ferrinho!”, ou “marginal tem que ficar no sol mesmo!”. Diante disso, mais pessoas se aglomeram no outro lado, assistem, passivamente.
A intervenção do artista traz à luz uma discussão sobre a passividade crítica e reflexiva do público/sociedade no que permeia a prática e a possibilidade de intervir no cotidiano das pessoas, no cotidiano de seu território, a televisão estava ali, nas ruas. Um fotógrafo de um jornal hegemônico da cidade sai da sala com ar condicionado e tira várias fotos do artista, não conversa com ninguém, volta para sua sala. Dias depois, eu mesma encontrei o fotógrafo e perguntei se saiu algo no jornal, ele afirmou que não porque nenhum repórter foi conversar com o artista, eu perguntei se ele, em sua plena capacidade de estabelecer um diálogo e construir reflexão com o sujeito da ação não poderia expor o teor da performance, a resposta foi evasiva mas compreensiva: não é dessa forma que nosso jornal funciona. Claro.
O nome da intervenção nos aponta os eixos: somos construídos para sermos propriedade do Estado, nossos corpos, nossas ideias, nossas percepções de mundo. A mídia e outros mecanismos, buscam nos exterminar, não como corpo físico, mas como corpo social.
Depois de aproximadamente 45 minutos de performance, o artista é retirado por um grupo de apoio que estavam reunidos de vigília no Juizado Especial Criminal acompanhando as audiências de companheiros presos por desacato pela polícia militar desde o início dos manifestos na cidade.
Ao som da conhecida vinheta “Hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou, todos os nossos sonhos serão verdades, o futuro já começou… Hoje a festa sua, hoje a festa é nossa, é de quem quiser, quem vier”, o artista é retirado do poste e levado para a parte do apoio em frente ao Juizado, ali se fez uma roda de discussão sobre a performance e foi avaliado todos os temas em questão.
A intervenção busca dialogar justamente com o desconhecimento do extermínio e genocídio de negros em periferias, em seu espaço imediato tenta causar a reflexão acerca dessa situação tão cotidiana em comunidades e favelas, higienizadas e escondidas na capital potiguar. O próprio artista relata os eixos que envolvem a performance realizada na semana passada que dialogam com diversos temas de transformação social e política.
PROPRIEDADE DO ESTADO – MÍDIA DE EXTERMÍNIO:
Existe também o lugar de um excluído, de um marginal que não tem a mínima oportunidade e sequer uma chance no mundo, senti o forte grito sem voz daqueles injustiçados que tentam provar para a sociedade do espetáculo que são inocentes. Alguns que são presos, amordaçados, feridos, vilipendiados, difamados, julgados, violentados verbalmente apenas por defenderem seus direitos; outros sofrem execuções de grupos secretos de extermínio apenas por estar numa sociedade em que a violência e a desigualdade social são necessárias para o bem de uma lógica de consumo. Pude constatar em nível a sociedade está mergulhada numa ditadura do olho, permanecendo apenas no seu lugar de público contemplativo, numa televisão projetada na vida real.
A morte, a violência e o descaso diante dos olhos e o máximo que se tenta ou pode fazer é ligar seu maquinário tecnológico e apertar o rec. Estamos em completa vigilância – partindo do poder e de nós mesmos -, a política do medo está regendo a orquestra e o Estado é o maestro. Tudo foi construído e muito bem organizado na ditadura, criaram muito bem o policial que vive em nossas cabeças. Estrutura de poder que escolhe e faz os outros escolherem – com acusações falsas e sem fundamento – quem bem entende para se tornar mais um terrorista exposto em praça pública, de preferência aquele que pensa, critica e age.
Esse poder dominante que mostra quem é que manda e quem a sociedade precisa recorrer em busca de esmolas morais e éticas, poder que tolhe o direito de cada um de poder questionar suas leis impondo medo, medo e mais medo e posicionando estrategicamente cães de guarda raivosos equipados com fuzis, escopetas, camburões e armaduras cuja função “só cumpre ordens”. E a mídia desonesta e preconceituosa que por sua vez, só mente, destrata, engana, manipula e esconde fatos, mídia hegemônica que apenas atende e contempla o bem dos patrocinadores e não do povo, deseducando-o.
A performance não só discute isso, ela está aberta para diversos sentidos que vão além desse pequeno texto, ela envolve toda nossa estrutura social, a censura velada e a ditadura calada que vivemos bem como a noção de propriedade, o fascismo que vive dentro da cabeça de muitos e a verdade que deixamos entrar sem nenhum posicionamento crítico. Deve-se refletir a maneira pouco eficiente e muitas vezes burra que se conduz o modo de pensar de uma sociedade e de um governo.
Relato do artista: João Pedro Tavares.
* A intervenção está relacionada com ações do Projeto Poéticas Urbanas, de atuação em Natal/RN e busca discutir entre diversos fluxos o eixo de arte e cultura num processo de transformação do território no campo social de político.