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Prisão da jornalista da Carta Potiguar: relato da repressão policial e abuso de poder

Ontem tive meus direitos violados.

Mas não apenas isso.

Ontem todos tivemos nossos direitos violados.

Mas não apenas ontem.

Todos os dias temos nossos direitos violados.

 

Esse é apenas um relato do que pude presenciar como jornalista de mídia alternativa, como mulher, como cidadã, como mais uma em meio a tantos que lutam por um árduo processo de transformação social, político e cultural. Já alerto para importância de ver cada vídeo que tem aqui, gravei quatro vídeos antes de ser detida, todos não editados e são necessários para entender o que se passa nas ruas.

Cheguei na Câmara Municipal de Natal (também conhecida como casa do povo) e essa estava cercada por grades e com dispositivos de segurança para, segundo os próprios guardas municipais, impedir atos violentos com objetos perigosos. Nesse ato, estavam presentes mulheres, crianças e estudantes, como movimentos sociais estava o Movimento Passe Livre e o Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas com suas famílias. Quando cheguei muitos se encontravam do lado de fora, com a justificativa de que a sessão estava lotada. Isso tudo foi entendido.

Pedi acesso como imprensa, não me foi concedido. Como de costume, mídias alternativas têm seu lugar determinado: na rua e com o povo, onde o povo não entra, como espaços institucionalizados, burocratizados, normatizados, elaborados para controlar o poder popular, as mídias hegemônicas que têm espaço garantido, mídias alternativas e livres não.

Com algum tempo percebi que muitas pessoas entravam, sem crachás, sem argumentos. Passavam entre todos que estavam esperando no sol na frente do portão da Câmara, perguntei novamente aos Guardas o porque das pessoas não poderem ter acesso à informação, dito que é um direito constitucional. A Guarda Municipal não reagiu bem à pressão e começaram a empurrar todos, com cassetetes nas mãos, as primeiras da fila eram mulheres, eu e uma militante de movimentos.

Eu falei, ingenuamente e insistentemente: “senhor, você não é polícia! Guarda são civis!”, a Guarda fechou as portas da Casa do Povo, todos começamos a bater na porta com o grito de ter, sem diálogo algum, sem direito algum, o acesso totalmente negado com empurrões dos Guardas.

Saíram novamente, com cassetetes nas mãos. Não é novidade a repressão dessa Guarda contra manifestantes que estão lá para lutar pelos direitos com reivindicações (Repressão de guardas a manifestantes).

Eu não tenho estômago para me posicionar imparcialmente, eu desacredito da neutralidade. E com a única arma que tinha nas mãos, eu disse: “o senhor vai bater em quem? Tá com isso na mão para que?”, não podendo me bater com o cassetete, empurrou meu queixo com impulso para trás. Isso, desencadeou a revolta popular, agressão contra uma mulher, que tinha uma única arma na mão: a câmera.

Não foi apenas isso, foi também a tensão de termos diversos direitos violados, foram todos os dias que fomos agredidos fisicamente e subjetivamente por poderes que acreditam que podem atentar contra vidas, contra os corpos e contra direitos.

Ao sair da parte da Câmara, vi ação da policia militar que estava prendendo um menor, sequer sabia o motivo, mas sabia que tinham que informar para onde iam levar. Não o fizeram. Muitos sentaram na frente do carro para perguntar porque aqueles homens, fardados mas sem identificação, estavam levando um menor algemado para algum lugar que não informaram. Depois de muito tempo, informaram que era para a DP Zona Sul e que ia preso por dano ao patrimônio público porque estava apedrejando espaços físicos.

Começamos a indagar a falta de identificação dos policiais militares, esse é um dos direitos violados. O veículo deu ré, e vieram policiais com spray de pimenta, com uma 12 carregada de bala de borracha e muitos com cassetetes, chamou-se os reforços. (Vídeo 1)

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Foto: Adão Galdino

Eu não corri. Não fiquei ao lado de muitos, que preocupados, me puxavam para as laterais. Eu queria de perto filmar o que esses homens, representantes do Estado diziam e faziam. Isso não é deixar de ser jornalista, isso não é deixar de ser mídia alternativa, isso é deixar de lado o mito da imparcialidade que ronda o jornalismo desse Estado.

Fomos recepcionados com mais spray de pimenta em meio a mulheres, crianças e estudantes. Os policiais agrediram com cassetetes os que estavam apenas questionando a falta de identificação e queriam impedir mais uma arbitrariedade da PM, que escolhe entre muitos, quem pode ou não pode levar, o que pode ou não pode fazer, muitos procedimentos que ferem nossa lei maior: a constituição federal brasileira.

Me posicionei na linha de frente. No meio de um confronto tão desigual, como nossa própria sociedade. Eu pude gravar diversos abusos de policiais, como vários tirando com cassetetes os que estavam sentados na frente do veículo que levariam o menor. Um deles que falava insistentemente como “vocês são estudantes? Vem! Vem!” e apontava o spray de pimenta, muitos ditavam palavras de ordem contra manifestantes como “vá tomar no c*”. (Vídeo 2)

Ao policial que estava com a doze com balas de borracha eu me dirigi e falei “a identificação por favor.”, e recebi como resposta de outro policial sem identificação “não tem nome não, não tem nome não, nós somos bandidos que estamos fardados” e fui empurrada novamente. Dos gritos populares podia-se ouvir “recua polícia, recua! É o poder popular que está na rua!”. Eu me ajoelhei em frente a todos policiais e comecei a gritar por identificação, com uma mão para cima e a outra na câmera, impedindo que atirassem contra mulheres, pedindo a identificação, dizia “eu quero a sua identificação”. (Vídeo 3)

Passional, sim. Estava, como muitos, indignada pela falta de preparo, pelo não-diálogo, pela violação de nossos direitos que cotidianamente são retirados de nós, sem justificativa, apenas com a face de um Estado que pode tudo. Qualquer um merece saber o nome de seu tirano. O nome de quem está atirando a esmo e fardado contra os cidadãos.

Recebemos como resposta “vá tomar do olho do seu cu” dos policiais, as pessoas respondem aos policiais como podem. Minha câmera várias vezes foi tocada na tentativa de impedir a gravação. Acompanhando tudo e gravando como primeira pessoa, percebia que os policiais escolhiam alvos a esmo e batiam, várias vezes tentei impedir tal arbitrariedade, em um das vezes novamente fui empurrada e cai por cima de um carro, saio para lateral e volto a gravar os que estavam nos gravando, a polícia ambiental e militar.

Quando chego no paredão da polícia meu ultimo vídeo mostra que chego até os policiais e falo “eu quero a identificação do senhor por favor, meu nome é Catarina Santos, eu sou da Carta Potiguar”, pego ainda a imagem de Mariano Lúcio, estudante de Ciências Sociais sendo preso porque pediu a identificação do policial que estava disparando tiros de bala de borracha. (Vídeo 4)

Nesse momento, um policial põe a mão na minha câmera e desliga, me impedindo de gravar o que vinha por diante, outro sai por traz pega meus pulsos e grita “você está presa!”, seis policiais ficam ao meu redor e dizem “tá presa, tá presa! Tá pensando o que?”, eu pergunto “mas eu estou presa por qual motivo?”, eles repetem “tá presa! Leva para lá, pode levar!”.

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Registro retirado do vídeo do Portal NoAr

 

Chego no veiculo carregada por seis policiais que, mesmo sem eu oferecer resistência me colocam de cabeça para baixo com várias mãos em todo meu corpo (meus seios, minha cabeça, minha bunda) me empurram para dentro, torceram minha mão e meus pés, seis policiais homens para apenas uma jornalista mulher. Me agrediram, pressionaram meus pulsos, me deram uma gravata e um policial tenta pegar minha câmera quando eu grito “Esse é meu material de trabalho! Isso é roubo! A câmera é minha! É minha!” e deixei a câmera embaixo de meu corpo, pela confusão que já se fazia fora, eles fecham o veiculo.

Vejo Sandro Pimentel (vereador do PSOL) de longe, e pulo para o banco de passageiros e em desespero abro o vidro e peço ajuda para que saibam que estão me levando. (Vídeo mostra momento a partir de 0:48)

Em um paredão de vários policiais, com a viatura isolada, sem saber o crime que cometi, sem saber para onde me levavam, com o único material de registro indo para as mãos da polícia e sabendo como as coisas são feitas na capital potiguar, entrei em desespero. Os policiais retiram Sandro com agressividade do lado da viatura e me levam para a DP.

No carro, os policiais tentam entrar em contato com o Major Marinho para saber o motivo de minha prisão, sem sucesso. Com a câmera nas mãos, protejo o cartão de memória como posso para que não seja apreendido, levando todo o material do abuso de poder que tenho em mãos. Quando chego na DP, encontro outros dois detidos: um menor, e Mariano, detido por desacato porque pedia a identificação do policial como dito acima. O policial que me trouxe encontra os outros e fala para os outros que estavam na DP: “esse aqui foi detido por dano ao patrimônio, esse aqui por desacato e essa aqui eu não sei não”.

Os advogados chegam e começamos a entender que  o Major Marinho decretou minha detenção por desacato (lembro bem que quem me deu voz de prisão não foi o Major, ele sequer estava próximo a mim no momento), como justificativa diz que estava agressiva pedindo a identificação dos policiais militares, outro policial, o que estava com a arma disse que ditei palavras de ordem contra ele, quando a filmagem aponta claramente que pedia sua identificação.

Encontrei na DP os advogados Natália Bastos, Hélio Miguel e Adonyara de Jesus, os dois primeiros informados pelo Centro de Referência de Direitos Humanos (CRDH) por amigos e a ultima que me acompanhou desde a Câmara e é representante de Amanda Gurgel, do PSTU.

Os dois outros detidos foram liberados sem serem autuados, eu fui a única autuada por desacato a autoridade categorizada com ilícito penal: Art. 331 do Código Penal Brasileiro. Minha audiência será dia 09 de outubro, as 08:30 no Juizado Especial Criminal (Av. Duque de Caxias, 151, Ribeira). Nesse dia, tentarei mostrar que meu único crime foi estar com a câmera nas mãos,  filmar e pedir identificação dos atos de agressão policial brutal contra mulheres, estudantes e crianças.

Muitos que faziam fotos e registros tinham seus celulares como alvo da polícia, como vocês podem ver a partir do minuto 4:19 do vídeo “linkado” abaixo começam as prisões por motivo de solicitação de identificação, Mariano é preso, um dos rapazes que filma a prisão tem o celular quebrado com cassetete e chutes, além de ser agredido na seqüência e no minuto 05:33 é realizada minha prisão com mais de cinco policiais me agredindo e colocando dentro do veículo  (Veja vídeo com atenção).

O que eu sofri, não foi nada perto do que muitos sofrem todos os dias. Muitos que moram em vilas, favelas e comunidades têm o direito violado e não tem voz, muitos morrem sobre a lógica opressora de um Estado sob forma de “democracia”. Policiais entram em suas casas sem mandatos, policiais somem com Amarildos ainda salgados do mar (“meu marido morreu com fome” disse a mulher de Amarildo), policiais agem com a coleira de um Estado que vem mostrando sua face cada dia.

Chega de criminalização de movimentos sociais! Chega de truculência de policiais fardados sem identificação! Chega de receber tiros sem saber o nome de quem atirou! Chega de justificar violência contra nossos corpos por desacato! Chega de abuso de poder!

Chega de professores presos e indiciados por vandalismo! Chega de jornalistas presos e impedidos de realizar seus trabalhos! Chega de agressão aos estudantes! Chega de agressão nos morros e favelas! Chega dessa lógica alienada de vandalismo e de violência ao patrimônio. Violência quem faz é o Estado, uma violência gratuita e assinada por políticos, uma violência que muitos de vocês, em suas casas e em seus trabalhos, sequer têm acesso.

Até agora procuro meus machucados, além da mancha pela gravata que recebi do policial que até agora não sei o nome no momento de minha detenção. Mas o maior machucado ocorre nas veias sociais desse Estado, em diversos lugares desse país, tão “democrático”, tão “do povo”, tão aberto ao diálogo. Eu não tenho medo, não me intimido, eu tenho tristeza e coragem.

Polícia que bate em mulher, polícia que agride estudante, polícia que agride jornalista, polícia que prende menor sem informar para onde vai, polícia que decide o que é desacato, polícia que te prende sem motivo, polícia que usa arma sem identificação, polícia que defende quem? Quem a polícia protege? Quem a polícia serve?

A vida, o respeito ao outro, solidariedade e o amor devem ultrapassar fronteiras. Não sei se ensinam isso a policia norte-riograndense e de outro estados nesse país dito tão bonito e solidário, não sei se ensinam isso para os políticos que se escondem atrás de imagens em eleições. Mas a vivência com os verdadeiros oprimidos me ensinou isso.

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Foto: Túlio Madson

 

 

 

A Câmara Municipal de Natal está repleta de sangue.

O Estado está repleto de sangue.

Está na hora de vermos além das janelas quebradas.

Essa luta é de tod@s.