Por Caio Cézar Gabriel
Historiador e Mestre em Estudos Urbanos e Regionais (UFRN)
Graduando em Direito (UERN)
ccges@hotmail.com
Na ultima segunda-feira, 16, foi veiculado nos jornais da cidade uma noticia que parece não mais chocar a opinião pública dessa cidade: o assassinato e uma tentativa de homicídio contra dois adolescentes, um de 16 anos de idade e o outro de 14 respectivamente. Para ser mais preciso, o palco do espetáculo macabro do extermínio foi (corriqueiramente?) um local considerado periférico pelos padrões urbanísticos e sociais, mais especificamente o loteamento Jardim Progresso, situado no Bairro Nossa Senhora da apresentação, região Norte de Natal.
Para ser mais convincente, conheci pessoalmente o bairro Nossa Senhora da Apresentação quando o elegi objeto de pesquisa de minha dissertação de Mestrado, defendida a alguns anos atrás. De um modo geral, trabalhei com o bairro no sentido de tentar entender como o morador via o seu espaço de vivência a partir da percepção da violência e da segregação, ou seja, o objetivo primordial do estudo foi compreender esses olhares confluenciados de dentro para fora, e ver como os discursos populares locais, a partir dessas duas variáveis (violência e segregação, que são prato cheio para os discursos incorretamente políticos e para a fertilização de um imaginário popular preconceituoso) desenham o espaço, assim como também incidem nos mais variados aspectos da vida cotidiana do morador. Bem, os resultados são temas para um próximo artigo.
O Nossa Senhora da Apresentação é um bairro que surgiu no âmbito das políticas habitacionais da década de 1970, onde a sua caracterização espacial está alicerçada na relação trivial entre classe-renda-moradia, pois as camadas sociais menos abastardas, que não tinham como arcar com ônus da casa própria via empreendimentos imobiliários, acabaram por consolidar suas moradias nos loteamentos, adquirindo-os por meio da compra precária ou pela invasão. Assim, o bairro, enquanto válvula de escape do surto habitacional vivenciado nos governos militares, ao longo dos anos foi se transformando em um grande emaranhado de conjuntos habitacionais (esses surgidos somente na década de 1980), espaços de valorização imobiliária e loteamentos irregulares, e é nesse ultimo que se encaixa o Jardim Progresso.
Mas a pergunta que não quer calar é: qual é a relação entre a historicidade do bairro e os crimes cometidos contra os adolescentes? A relação é intrínseca quando nos voltamos para o Jardim Progresso e constatamos que esse espaço é vitima da reprodução das grandes estruturas e modelos de desigualdade a um nível localizado, ou seja: no seio do Nossa Senhora, os bolsões de pobreza, além de sofrerem com as mais distintas formas de carências, violência e injustiças sociais oriundas das pálidas políticas públicas setoriais de promoção da cidadania, os mesmos estão no epicentro de um redemoinho de preconceitos, medos e estigmas construídos por meio de uma cópia barata do mundo lá de fora, onde os vizinhos dos conjuntos exclusivos impõe aos moradores desses loteamentos carentes a culpa irrefutável do paranoico medo da violência e da insegurança cotidiana, e advinha quem paga o pato dessa chaga espacializada de periferia da periferia? Claro, os grupos de jovens e adolescentes, que são lançados a eles a impiedosa carga estigmatizada de agentes passivos e ativos da criminalidade local.
Ampliando o debate, é inevitável não fazermos diversas perguntas que desencadeie uma série de reflexões sobre a questão do extermínio de nossas camadas sociais mais jovens, a começar pela anemia de nosso planejamento, e investimento, nas áreas de políticas assistenciais voltadas para a juventude, especialmente aos mais pobres, e aí a seara é longa e o caminho é complexo, mas encara-lo como tortuoso, é permanecer na mesma preguiça ostracista de nossos gestores quando falamos em enfrentar a questão ao modo face to face, cortando da própria carne para se admitir que a questão existe e merece solução.
Nessa linha de pensamento, quando afirmo que a matança de nossos meninos já não choca mais (aliás, e quando chocou?), construo essa observação a partir de duas premissas: uma quantitativa e a outra qualitativa. Quantitativa porque até julho desse ano (e aqui vou ser modesto afirmando que não estamos levando em consideração os meses de agosto e setembro de 2013) o Mapa da Violência (Instituto Sangari) já constatava que a tão romantizada Natal já não tem mais um sol que brilha para nossos jovens, onde particularmente somos umas das capitais lideres no ranking de crescimento da taxa de homicídios de pessoas entre 15 e 24 anos, no qual chegamos ao violento percentual de 267,3%, deixando a metrópole baiana em segundo lugar.
E o que seria a analise desse morticínio numa perspectiva qualitativa? A perspectiva qualitativa entra aqui na condição de que vivenciamos um total sentimento de Anestesia Moral, aquela que para a Professora Eunice Maria de Alencar (UnB) – que expõe como exemplo elucidativo o extermínio de judeus nos campos de concentração nazistas – tratar-se da apatia do outro diante das mais variadas formas de barbáries sociais, onde estas são decorrentes de intensas frustrações oriundas da tentativa exaustiva de superação de obstáculos, em outras ideias: acabamos nos “acostumando” com as atrocidades e carnificinas quando as possibilidades de sua efetiva prevenção parecem ser distantes.
O caso dos jovens do Jardim Progresso é apenas mais um exemplo dessa frieza macabra diante de uma política de execução massificada não oficializada, onde parece ser tudo normal quando as imagens do teatro do horror, que mais se assemelham aos freak shows circenses, são estampadas nos jornais larápios do meio-dia, que roubam das vitimas estendidas ao chão – com seus corpos dilacerados pelos tiros certeiros e covardes de seus algozes, e rostos esmaecidos em sangue com o reflexo das câmeras fotográficas dos celulares de ultima geração das pessoas que fazem do cadáver um arquivo de suvenir interativo – os seus últimos resquícios de dignidade humana quando os shows mans desse incompreensível horário “nobre” da programação local (que estranhamente é contemplado com alegria pelos seus telespectadores), em meio ao um regozijo perverso e cínico, justifica a morte dos adolescentes pelo seu “envolvimento com o as torcidas organizadas ou com o tráfico de drogas”, que aliás, para a policia e órgãos investigativos, são motivos suficientes para o seu arquivamento, e para o “trabalhador pai de família” a premissa de que “morreu porque não era um cidadão de bem” é válida, e ai daquele que a contestar.
Para fechar a grande cadeia de brutalidade fantasiada de utilidade pública, os nossos jovens, que são vitimas dessa engrenagem omissa (que começa quando Estado e a sociedade civil os dão as costas, e termina quando os programas policiais festejam a sua execução), acabam apenas ganhando espaço em algum boletim diário em forma de nota de roda pé, onde a narração fria do fato (“Havangynelly Firmino morreu no local, antes mesmo de receber atendimento médico”) apaga dessa meninada seus nomes, rostos, olhares, expressões, relações familiares e comunitárias, projetos e planos de vida. E assim, no dia seguinte a vida volta ao normal e os jornais terão matéria para seu endosso, pois tenho plena certeza que mesmo antes de terminar essas breves páginas outro jovem está sendo assassinado, e sua morte não irá mais chocar mais ninguém.