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Bolívia é a nova vítima da xenofobia

 

Não foram apenas os médicos e médicas cubanas que foram vítimas do racismo voraz e da xenofobia jambo que parecem campear livres nestas plagas, ironicamente marcadas pela morenice brejeira e cosmopolita cunhada sob as cores e formas de um secular processo de miscigenação que, de seu turno, acabou por moldar o inédito mosaico étnico e cultural que tão marcadamente nos caracteriza enquanto país e nação.

Ao falar sobre o asilo que o Brasil deu ao senador boliviano Roger Pinto Molina, Maristela Basso, advogada, comentarista do Jornal da Cultura (TV Cultura), e professora doutora da Faculdade de Direito da USP (Universidade de São Paulo), afirmou em rede nacional que “a Bolívia é insignificante em todas as perspectivas”.

Ao comentar a fuga do senador que gerou uma crise diplomática que valeu a cabeça de Antonio Patriota, então Ministro das Relações Exteriores, a professora disse, dentre outras coisas, que o assunto é “insignificante para nós”. Eis trecho emblemático de suas exposições:

“A Bolívia é insignificante em todas as perspectivas. É um país, sim, que tem uma fronteira enorme com o Brasil, são nossos vizinhos que têm maior fronteira terrestre, mas nós não temos nenhuma relação estratégica com a Bolívia, nós não temos nenhum interesse comercial com a Bolívia.

Os brasileiros não querem ir para a Bolívia. Os bolivianos que vêm de lá vêm tentando uma vida melhor aqui, [eles] não contribuem para o desenvolvimento tecnológico, cultural, social e desenvolvimentista do Brasil. Então, Bolívia é um assunto menor”.

A desinformação e o preconceito demonstrados são comoventes. O Brasil tem sim relações comerciais com a Bolívia – e não são pequenas. Quase três quartos do gás natural consumido pelas indústrias paulistas provem da Bolívia por meio de um gasoduto de mais de 3.000 quilômetros que liga a cidade boliviana de Rio Grande a Porto Alegre, passando por São Paulo. Sobreviveria a “locomotiva do país” sem o gás vindo dos Andes?

Ainda, a Petrobras tem acordo com a estatal boliviana de petróleo YPFB para exportação diária de 30 milhões de metros cúbicos de gás, sendo o Brasil o principal cliente da Bolívia nesse sentido. Em 2012, as exportações de gás da Bolívia somaram US$ 5,7 milhões de dólares, com três quartos deste valor comprados pelo Brasil.

Quanto às afirmações de que a Bolívia se trata de um país antidemocrático e militarizado, nada mais inverdadeiro. Nesse sentido, atrevo-me a relatar minha experiência pessoal: estive na Bolívia por duas vezes nos últimos quatro anos, somando-se em quase um mês os dias em que passei viajando por suas cidades e vilarejos conhecendo a belíssima cultura de um Estado real e maravilhosamente plurinacional, conforme observa sua própria Constituição. Aliás, qual outro país reconhece em sua Lei Maior a existência explícita, enquanto sujeitas de direitos, de cada nação indígena que o compõe?

Não vi e jamais li nada acerca de uma militarização em níveis anormais ou que amparasse uma suposta ditadura, conforme é sugerido pela professora. Evo Morales foi democraticamente eleito. Por duas vezes, a propósito. Tive a sorte e a felicidade de me fazer presente na sua segunda posse, em 23 de janeiro de 2010, ocorrida na cidade histórica de Tiwanaku, a 70 quilômetros de La Paz, e participar da belíssima festa protagonizada pelos Aimarás (em cujo idioma o presidente discursou), Aruaques e todos os demais povos ameríndios bolivianos ali representados sob as auspiciosas cores da Whipala.

Evo tem a cara do povo boliviano, país predominantemente indígena, diferentemente dos brancos Sanchez de Lozada, Suares, Ramirez e demais ex-presidentes que foram caninamente fiéis à cartilha do Consenso de Washington. Discordo de várias ações e diretrizes adotadas por ele, mas aqui estamos tratando de fatos objetivos e incontestes, diversos do caráter panfletário de determinado semanário de inclinações fascistas que recentemente se reportou à Bolívia como “narcoestado”.

A professora – de vasta produção na área de Direito Internacional – deixou ainda mais evidente que uma reconhecida bagagem intelectual e acadêmica pode sim servir de anteparo aos mais abjetos preconceitos. Notadamente, contra governos populares e de esquerda que sucederam a catastrófica onda neoliberal que varreu a América Latina na década de 90, época em que, para ela, talvez a Bolívia não fosse um “assunto menor”.

https://www.youtube.com/watch?v=bFJ-MnogWXk