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Cuba Libre, preconceito e batatas fritas

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– Viram os médicos cubanos que chegaram ao Brasil nesses dias? Comentou um bem nutrido jovem de franja caindo sob um olho e queixo proeminente. Indagava enquanto tomava uma cerveja e comia batatas-fritas em um frequentado bar de determinada cidade litorânea.

 

– Pois é – respondeu sua acompanhante, uma moça de estatura mediana, cabelos tingidos de loiro e bochechas coradas de maquiagem -, andei lendo que serão escravizados aqui. Absurdo! Alguém avise ao governo que existe uma lei chamada Leia Áurea que acabou com a escravidão – disse enquanto mexia em sua Cuba Libre com o canudo.

 

– Eu sei o que o governo quer com a vinda desse magote de vagabundos – ponderou um terceiro jovem, de músculos sobressalientes, camisa com grandes letras bordadas no peito e cabelos oleosos de creme – querem implantar o comunismo, a começar pelo interior. Não percebem? Médico em interior é celebridade! Quase um deus! Tenho medo do futuro que nos espera.

 

Uma quarta jovem, com ar meio blasé, cabelos negros também estirados e escuros olhos marcados por uma comovente indiferença, interviu: – Também não duvido que esses médicos sejam agentes de Fidel disfarçados. Guerrilheiros, pra falar a verdade. Mas nem se preocupem, que logo logo serão desmascarados. Não viram o presidente do Conselho Regional de Medicina de Minas Gerais dizer que vai orientar os médicos brasileiros a não socorrerem gente que for vítima das falhas dos cubanos? Aí sim, todo mundo vai ver quem é médico e quem é açougueiro, e aí essa farsa acaba de vez!

 

– Mas o que me incomoda mesmo é a aparência desses médicos – afirmou a das bochechas coradas – Um bando de cafuçú horroroso. Parecem até o Geraldo, porteiro lá do prédio.

 

As gargalhadas que se seguiram a encorajaram a prosseguir.

 

– Já pensou, você ir pra um atendimento e dar de cara com uma médica que mais parece sua empregada doméstica? Qual a credibilidade que uma pessoa dessas tem pra lhe prescrever uma receita, lhe passar um medicamento? Prefiro eu mesmo me automedicar. É até mais seguro. Aparência é tudo, gente. Essas batatas-fritas aqui, por exemplo. Podem estar deliciosas, mas quem nessa mesa as comeria se não estivessem tão amarelinhas assim? É a mesma coisa com os médicos. Eu me recuso a ser atendida por porteiros e empregadas domésticas. Garçom, por favor, me traz mais uma Cuba Libre.

 

Esperou o garçom sair e, após observá-lo com um olhar atento, retomou:

 

– Vejam esse garçom. Tem jeito de garçom, cara de garçom. Até o olhar é de garçom. Olhem só o bigode. Se não fosse garçom certamente seria cobrador de ônibus. Quem duvida que ele nasceu pra fazer isso? A diferença é que ele sabe muito bem onde é o seu lugar, o que lhe está reservado. Alguém aqui o imagina vestindo jaleco, atendendo alguém em seu consultório? Pois é. É o que eu sempre digo, as pessoas tem que saber onde estão os seus lugares.

 

Um senhor da mesa ao lado, atento à exposição da moça desde o início, a interrompeu:

 

– Se me permite a intromissão, concordo com você. Médico pra mim tem que se portar como tal. Não gostaria de ser atendido por um curandeiro. Quanto ao fato das pessoas saberem onde são os seus respectivos lugares, não tenho como discordar. Me aflige a alma ver os aeroportos do País transformados em rodoviárias.

 

Todos riram. Nesse ponto, metade do bar já se voltava para sua mesa, com sinceros olhares de concordância e condescendentes expressões de satisfação e anuência.

 

A jovem, contemplada com a inesperada atenção, vaticinou:

 

– Não acredito que nenhum de nós aqui tenha estudado com gente vocacionada a ser garçom e empregada. Tenho pena do nosso povo que será atendido por esses cubanos com cara e jeito de serviçais. Na primeira dengue e febre amarela que tiverem, é bom encomendarem logo o caixão!

 

Efusivos aplausos brotaram das mesas ao redor. Insuflada pelo entusiasmo com que suas palavras foram acolhidas pelos presentes, autoproclamou-se em sua mais recôndita intimidade como a legítima porta-voz da indignação reprimida nas gargantas de todos os cidadãos e cidadãs de alva e perfumada epiderme que, com tamanho entusiasmo, a ovacionaram naquela fatídica e despretensiosa conversa de bar.

 

Na mesma noite, chegou em casa convicta de que tinha o dever de compartilhar com o mundo as ponderações que com tanta propriedade terminara de fazer acerca dos médicos e médicas cubanas. Era uma cidadã de bem, comprometida com o destino do País e preocupada com o futuro das pessoas que seriam submetidas à imperícia dos doutores e doutoras caribenhas.

 

Em algumas poucas linhas, sintetizou em determinada rede social o bem-sucedido stand-up que acabara de proferir no bar e foi dormir com uma certeza em sua mente: estava em dia com seus deveres e obrigações cívicas para com a nação.

 

Na manhã seguinte, entrou em choque com a negativa repercussão da sua até então consagrada tese: tradicionais jornalistas, blogueiros, colunistas e participantes de redes sociais estavam reproduzindo seu discurso como algo, vejam vocês, pejorativo, mal-intencionado, racista, classista e preconceituoso.

 

Não compreendia. Fora tão bem aceita e aclamada na noite anterior. Caiu-lhe o queixo quando viu seus próprios companheiros de mesa, tão bem alinhados com o que dissera, compartilhando e engrossando o coro das impiedosas críticas voltadas ao que acabara escrever.

 

A jovem procurou se defender. Disse que se tratava tão somente de sua opinião, clamou por respeito e afirmou que não quis em nenhum momento causar polêmica. Orientada de que veicular racismo e discriminação por meio de suas opiniões poderia ser enquadrado como conduta criminosa, não resistiu: deprimiu-se e cancelou sua conta na aludida rede social, isolando-se do assédio e do contato do mundo.

 

Seus amigos, por sua vez, muito embora em público se omitissem ou rechaçassem o que antes ratificaram em praça pública, permaneceram afiliados ao seu discurso, mas agora, no entanto, com maior discrição e menos entusiasmo, expondo suas ideias com liberdade e desenvoltura apenas em espaços restritos, como chats privados ou grupelhos fechados dos quais fosse possível extrair a garantia da homogeneidade de seus pares – “poderia ter acontecido com qualquer um de nós”, diziam -, brancos e brancas bem alimentados e “bem nascidos”. O que não podia acontecer era sofrerem a intensa retaliação que a pobre garota estava sofrendo por ter dito algo que todo mundo concorda.

 

Não se pode, porém, acusá-los de não terem se solidarizado com a sua companheira,  autoentronada porta-bandeira da dogmática ortodoxia medioclassista. Apenas não o fizeram em público, claro.