Chamado de “século das multidões”, o século XX nos deixou como legado um verdadeiro kit semiótico completo de ferramentas de gestão do comportamento de grupos e multidões. Esse kit composto por 10 ferramentas é aplicado na sua totalidade ou em fragmentos por políticos, agências governamentais, líderes de seitas, jornalistas e publicitários. Desde as manifestações de rua anti-globalização de Seattle em 1999, observa-se uma crescente importância na manipulação das multidões. A sequência atual de manifestações em diversos países como Brasil, Egito e Turquia nos faria questionar se estariam sendo aplicados nestes eventos ferramentas desse kit. Por isso, vamos entender cada uma dessas dez ferramentas para que possamos reconhecê-las nas ruas ou nas mídias.
O poder das multidões para determinar mudanças políticas é um dos temas mais significativos da História. Mas certamente as manifestações anti-globalização em Seattle em 1999 e em Londres em 2001 foram o ponto de viragem na maneira como os poderes estabelecidos viam os protestos. Os manifestantes utilizaram novas tecnologias de comunicação como laptops, Internet e mensagens em SMS por dispositivos móveis. A partir de então as agências governamentais responderam com suas próprias tecnologia invasivas: redes de monitoramento através de câmeras e sistemas de gestão das multidões.
Quando vemos a sequências de manifestações como na Turquia, Egito e Brasil, passamos a discutir sobre a espontaneidade ou não desses eventos, principalmente quando nos deparamos com o livro Killing Hope: U.S. Military and CIA Intervention Since World War II de William Blum (ex-funcionário do Departamento de Estado dos EUA) onde faz um relato das intervenções norte-americanas em diversos países através de ações de agências governamentais por meio de ONGs como National Endowment for Democracy (NED) ou Freedom House. Segundo Blum (mais um da já longa lista de dissidentes como Snowden, o ex-agente Philip Agee e o soldado Bradley Manning), há uma verdadeira estratégia “cavalo de troia” ao não só financiar instituições civis com fundos, computadores, carros, mas também treinamentos para passar o know-how de manipulação de multidões.
O objetivo é claro: garantir a presença de governos fiéis aos interesses econômicos de Washington por meio do apoio de massas que veem nas livres manifestações a evidência de um jogo democrático.
Blum em entrevista afirma que ainda não há evidência de que o NED esteja ativo no Brasil por trás das manifestações, mas alerta: “Fiquem de olho no dinheiro. Quem está pagando as contas?” – clique aqui e leia a entrevista.
Origens do Kit Semiótico: Freud e Le Bon
Por isso, é necessário estarmos atentos à presença de alguns fenômenos de indução de comportamentos de multidões que fazem parte de um verdadeiro kit semiótico, conhecido desde o século XIX quando se iniciou a discussão sobre a existência de uma psicologia de massas na História.
Basicamente, as teorias que envolvem essa discussão baseiam-se em dois nomes: Gustave Le Bon e Sigmund Freud. A proposição principal do cientista social francês Le Bon (1841-1931) é que os fenômenos grupais se originam em uma espécie de mente coletiva que faria o indivíduo pensar, sentir e agir de forma diferente quando tomado individualmente. Nessa mentalidade coletiva o indivíduo estaria facilmente aberto aos fenômenos de sugestão, hipnose, mecanismos de fascinação e sede de poder.
Ao contrário, Freud (1856-1939) via no funcionamento psíquico das massas elementos como identificação, regressão, idealização e investimento libidinal. Em outras palavras, Freud via por trás adesão do indivíduo ao grupo ou ao líder o medo da solidão: pior que a morte, o que o indivíduo mais teme é a solidão ou saber que pode não mais ser desejado pelo outro. Aderir à maioria seria uma forma de atrair o amor e a aprovação dos outros para si.
Durante o século das multidões que foi o século XX descobriu-se que não há nada mais excitante do que concentrações humanas que vão das maiores como finais de futebol, concertos de rock, raves, manifestações de ruas a concentrações mais restritas como seminários motivacionais, encontros religiosos e grupos de autoajuda. Associando a psicologia e psicanálise às técnica linguísticas e discursivas, um dos mais importantes legados do século passado foi a elaboração de um verdadeiro kit semiótico de ferramentas de manipulção de comportamentos grupais, hoje aplicados para as mais diversas finalidades, sejam políticas, empresariais ou religiosas. Fique atento ao se deparar com a suspeita da aplicação das seguintes ferramentas:
1 – “Efeito Forer”
O psicólogo B.R. Forer descobriu que em geral as pessoas aceitam descrições de personalidade vagas e genéricas como fossem aplicáveis unicamente a si próprias, sem perceber que poderiam ser encaixadas em qualquer um. Afirmações genéricas como “você gosta que outras pessoas admirem você”, “você é muito crítico consigo mesmo”, “você tem muitas dúvidas”, “você tem um potencial inexplorado” ou “você quer mudanças” são usadas de astrólogos a seminários motivacionais. Midiaticamente, descrições genéricas sobre pessoas suspeitas por algum crime acabam tornando-se evidências de culpa. Por exemplo, no atual caso do adolescente Marcelo Pesseghini suspeito de ter matado toda a sua família: depoimentos afirmam que gostava de games de computador e andava com um capuz na cabeça para ficar parecido com o protagonista de um determinado game violento… assim como centenas de adolescentes. É o discurso lacunar do “talvez”, “possivelmente”, “pode” ou do “poderá”.
2 – Comandos embutidos
Discursos que trazem sugestões que carregam uma forte ênfase que afetam o ouvinte e provocam uma resposta emocional: “Você não está cansado de carregar esse fardo?”, “Tudo isso está me deixando louco!”, ou “Estou indignado com tudo que está aí!” são afirmações que pressupõem uma resposta positiva. Dos líderes de autoajuda que induzem o ouvinte à insatisfação consigo mesmo à propaganda midiática de protestos como o “Cansei!” ou todas as mobilizações em redes sociais como o “ProtestosBrasil” ou o “Impostômetro” contra a carga tributária.
3 – A “bomba do amor”
Criação de atmosferas de intensa positividade e amor por curtos períodos para criar estados de excitação e boa vontade. Muito usado por líderes religiosos e gurus que estimulam o amor entre os participantes para tornar o grupo atraente ao público externo. Tática que vai de encontro à tendência descrita por Freud do indivíduo se adequar ao grupo pelo medo da solidão.
4 – A tática do “Sim!”
Quando o emissor elenca uma série de questões que necessariamente resultarão em resposta positiva, terminando com uma conclusão falsa: Você ama seu País? Sim! Você ama sua família? Sim! Então vote em fulano de tal para presidente! A tática do “Sim!” possui algumas variações aplicadas, por exemplo, a grandes eventos como concertos de rock que para criar uma imagem de posicionamento sócio-político, abordam temas que é impossível não dizer “Sim!” O que dizer de eventos como o Rock in Rio cujo slogan de uma das suas edições era “Por um Mundo Melhor”? O slogan era de fácil adesão: quem pode ser contra esta idéia? O Rock in Rio fez pequenas tentativas de esclarecer às pessoas que compraram os ingressos o objetivo do evento. “Por um mundo melhor” tornou-se mais um slogan, uma imagem de fácil adesão. Mas como atingir um mundo melhor? A resposta a esta pergunta jamais foi ouvida, por suscitar polêmica, discussões ideológicas e políticas.
Marketing Global: slogans com temas sociais despolitizados que conseguem fácil adesão dos consumidores |
Um idêntico efeito pode ser criado usando a tática do “Não!”.
5 – A manipulação do “Crente Verdadeiro”
Em um grupo ou multidão uma significativa porcentagem é costuma ser mais susceptível à sugestão. Tais pessoas agem assim por medo ou sentimento de culpa. Elas são as primeiras a chorar, gritar ou concordar com as afirmações ou instruções do emissor. Seu comportamento pode ser o gatilho que dispara o efeito de ressonância no restante do grupo ou multidões. A conferir se o efeito Black Block nas manifestações de rua não se enquadraria nessa estratégia de indução das multidões.