Pensei em juntar números, fazer uma apresentação mais jornalística dos dados, ou até arriscar um texto com uma fundamentação sociológica mais precisa. Porém, abandonei a estratégia, que não expressaria a minha sensação, nem meu desejo de abordar o assunto. Melhor demonstrar o que penso a partir de um relato pessoal. A ideia é tentar, dentro das minhas possibilidades (e limitações), ajudar a trazer o tema para a esfera pública local.
Eu queria falar sobre o crescimento do crack, que dentro do meu espectro de atuação, ganha ares epidêmicos. Muitos são os casos de conhecidos que utilizam a droga. Entre parentes, na UFRN, colegas, nas escolas, espaços de trabalho, etc. Num campo onde jogo bola perto de casa, três estão viciados. O que iniciou primeiro se encontra num estágio mais avançado. Não é raro vê-lo passar com objetos materiais de sua casa na mão. Conforme um amigo, para trocar em crack. Nas duas últimas vezes que a triste cena aconteceu, ele passou com uma cadeira de balanço. Na outra, com uma janela arrancada da própria residência para conseguir recursos. O outro procura levar na brincadeira, como se estivesse numa grande farra. Na verdade, um comportamento refratário para esconder suas apreensões. O último tenta não entrar mas já está ingressando no vício.
A alteração física e de comportamento são perceptíveis. Todos emagreceram bastante e se tornaram mais introspectivos. A família recebe os primeiros sinais com o sumiço de coisas de valor. E reage como pode. Na verdade, o que fica patente é que ninguém está preparado para enfrentar tamanha barra. Da tentativa de “cortar as amizades ruins” apontadas como causadoras do problema, até prender no quarto são meios desesperados de cessar a situação.
Porém, o mais impressionante vem do modo como o “entorno” se comporta. Há todo tipo de carniceiro que se aproveita do desespero alheio. Um dos dependentes que conheci recebia constantemente lances sobre seus pertences por parte de colegas, vizinhos e conhecidos. “Acabei vendendo meu vídeo game assim”, me contou.
Há também ainda uma imagem da “inevitabilidade” que parece não ajudar em nada. “Tá fumando pedra. Tá lascado”, não cansei de ouvir essas últimas semanas. Ora, como assim? As pessoas confundem o risco que a droga representa com o fato de, uma vez “nesse mundo”, não existir saída. Uma conveniência conivente trágica, pois o discurso que serviu para amedrontar e desincentivar o uso torna-se uma camisa de força contra a urgente necessidade de enfrentar o problema.
Forma-se, assim, uma estranha divisão entre “noiados” despidos de cidadania, de alma versus “normais” e livres das drogas – um “ficha limpa”, classificação utilizada por um não usuário para demarcar, em seu preconceito, a suposta lascividade moral das vítimas das drogas. E com a ausência de preparo e enfrentamento mais apropriado, dependentes, famílias e amigos têm suas vidas arrasadas.
A impressão que construí é que precisamos desfazer muitos dos nossos pontos de vista petrificados e que, nem de longe, correspondem com a realidade. Não são “pessoas ruins”, “desequilibradas”, “sem religião” – ou qualquer outra coisa que o moralista queira pensar – que se tornam usuários de crack. Ricos, pobres, portadores de diplomas, analfabetos, trabalhadores, pais de família, enfim, qualquer um pode ser vítima do crack. Diante de tantas consequências nefastas, acho também que a sociedade não pode mais dar as costas para a tragédia que se acentua. Depois, pode ser tarde demais.