Seria interessante que eu lesse algo de introdutório aos estudos queer, antes de escrever algo mais substancial. Como não é o tempo, e como quero mesmo estimular o debate (e esclarecimentos daqueles que conhecem a teoria queer a fundo), prefiro fazer algo mais resumido. Decidi, a princípio, procurar algum texto que explorasse as relações entre a teoria queer e o filósofo de quem me ocupo atualmente: Jacques Derrida. Achei este – “Como traduzir a teoria queer para a língua portuguesa“, de Mário César Lugarinho. Por mais que eu reconheça a relevância do estatuto político-cultural-epistemológico dos estudos queer, não deixo de ver nesse texto a repetição de uma série de clichês surgidos em torno da figura de Derrida (1). Senão vejamos:
a) a primeira seção do artigo aproxima, já no título, os vocábulos “pós-estruturalismo” e “desconstrução”, e destaca, mais à frente (p. 37), Derrida como um dos pilares do pós-estruturalismo. Deveria esclarecer, na verdade, que os pilares do pós-estruturalismo se encontram nos Estados Unidos, onde o termo foi inventado. Derrida é, na verdade, uma inspiração de segunda mão, uma vez que sua teoria se encontra diluída em meio a um monte de referências outras (em especial a Nova Crítica). Essa crítica pós-estruturalista, por sua vez, teria sido responsável por transformar o texto literário de objeto puramente lingüístico a um objeto (“sobretudo”, destaca Lugarinho) cultural inserido em certas “condições de produção do discurso” (p. 36). São termos, portanto, bastante imprecisos;
b) Derrida escreve em vários textos sobre a necessidade de examinar a condição de produção do discurso (nem sempre nesses termos, vale lembrar); ele próprio faz isso de modo engenhoso (embora por vezes beire o hermetismo). Mas se a filosofia de Derrida pode ser compreendida enquanto filosofia da cultura, ele está longe de categorizar a literatura como objeto cultural. A literatura está para além de quaisquer categorizações, conforme ele declara em entrevista a Derek Attridge (em Acts of Literature). Essa expressão – “condições de produção do discurso” – provém, segundo se depreende (Lugarinho não esclarece o suficiente no texto), da análise do discurso inspirada em Foucault e Pêcheux;
c) “O termo desconstrução, derivado do procedimento do desconstrucionismo” (p. 37) – não, não mesmo! Os carros estão na frente dos bois, galera! A derivação (se é que é possível mesmo falar em derivação) é ao contrário – o desconstrucionismo é que veio (ou melhor, teria vindo) da desconstrução. Outra confusão conceitual: “Derrida propõe uma revisão profunda dos conceitos lingüísticos e funda o desconstrucionismo: ao analista cabe debruçar-se diretamente sobre a relação possível entre texto e contexto, indicando que o sentido se encontra determinado pelo contexto” (p. 38). Não se esclarece aí de quais conceitos lingüísticos se trata (Derrida centra suas análises em Saussure, mas comenta en passant outros teóricos, de Hjelmslev a Jakobson). Pior: Derrida é apresentado como o fundador do desconstrucionismo – vocábulo este tão vago quanto pós-estruturalismo, pois os chamados críticos desconstrucionistas – de Man, Hillis Miller, Fish, Bloom – mal se assemelham em seus projetos (o próprio Bloom destoa visivelmente dos demais). O verbo “determinar” aí também não é o mais adequado: existe sentido, é claro, mas sua determinação é apenas uma das formas que pode assumir, tendo em vista que os contextos não possuem centros de referência absolutos (Assinatura Acontecimento Contexto). Seria mais interessante usar “efeitos de sentido”;
d) lá vai uma caracterização do procedimento derridiano que, notemos bem, não tem NADA a ver com a proposta de Derrida: “Para Derrida, esse deslocamento [dos sentidos do discurso] opera uma transformação de sentido, levando qualquer interpretação a ser considerada válida” (p. 38) – o que não é verdade, sob pena de os próprios textos de Derrida serem tão válidos quanto os textos que os criticam, sei lá, por serem afins ao nazismo. Vários dos quase-conceitos de Derrida são engendrados segundo esse deslocamento – “suplemento” a partir de Rousseau, “phármakon” a partir de Platão, “outro” (ou melhor, “totalmente outro”) a partir de Lévinas, “desconstrução” a partir de Heidegger… Mas a transformação de sentidos operada pelo filósofo não implica que qualquer interpretação seja considerada válida, mas que a interpretação não possui um télos, uma finalidade em identificar o sentido último do texto. Dizer isso significa atribuir a Derrida um aspecto relativista (e homogeneizador) que simplesmente não existe nos textos dele;
e) “A perspectiva de Derrida combinou-se, em 1977, com a perspectiva da dita ‘esquerda’ norte-americana. Naquela cultura, baseada em fortes modelos tradicionais de uma democracia original e genética, a desconstrução gerou um movimento eficaz, de fortes bases teóricas, que operou uma crítica mordaz daquela sociedade” (p. 39). Quem combinou? O próprio Derrida? E em que medida? Pois se é verdade que existe uma apropriação do pensamento derridiano nos Estados Unidos, e se ele próprio contribuía de bom grado com o diálogo estabelecido em torno de sua obra – do qual a amizade entre ele e de Man é notável exemplo -, também é verdade que ele dava pistas (como numa conferência sobre a desconstrução nos Estados Unidos que não consigo lembrar agora qual é) de sua resistência ao assimilamento completo. Cumpre também analisar como se deu a crítica da sociedade norte-americana, especificamente, pois o desconstrucionismo norte-americano enquanto área dos estudos literários é uma apropriação pasteurizada de conteúdo político – e analisar como a teoria queer incorporou demandas políticas à apropriação que fez do desconstrucionismo.
O texto peca, em suma, pela falta de referências precisas a Derrida (e a Foucault, Pêcheux, Lacan, Althusser – apenas para citar os nomes mencionados ao longo do artigo). Isso se torna patente quando vemos a última parte, que trata da tradução do termo “queer” e da reflexão que Lugarinho propõe a respeito: fazer estudos queer no Brasil respeitando as especificidades das quebras de binarismo de gênero no País. Lugarinho lembra, acertadamente, que os estudos queer de linha anglo-saxã enfatizam os aspectos étnicos e de classe relativos às sociedades de onde provêm, ao mesmo tempo que sublinha a falta de empreendimento semelhante no âmbito das culturas latinas (p. 41). Seria interessante, por exemplo, fazer paralelos entre a tradução do termo queer e o quase-conceito derridiano de tradução. Mas a tradução pode existir se houver o reconhecimento da diferença entre as “condições de produção de discurso” (para retomar a expressão usada por Lugarinho) que engendram os textos a ser traduzidos. E aí temos um problema, pois parece que a teoria queer exerce sua “desconstrução de gênero” como pressuposto metodológico, mas também como objetivo programático – e aí restaria apenas uma sexualidade geral e indiferenciada (2). Sabe-se da aversão a Freud pelos adeptos da teoria queer; malgré elle, a teoria queer parece se encaminhar a um além do princípio de prazer, pois, se a desconstrução de gênero é plenamente realizada (o que não quer dizer finalizada), então a própria teoria queer perde seu propósito. Pior: corre o risco de legitimar aquilo próprio que critica (3) – dada, por exemplo, a ausência de recortes racializados da sexualidade, de modo a identificar diferenças entre uma lésbica branca e uma lésbica negra. Isso acontece porque os estudos queer (em especial a vertente anglo-saxã a que Lugarinho aludiu em seu texto) tendem a ser uma teoria de elite branca. E foi justamente uma elite branca que criou o liberalismo, que reforça as desigualdades sociais, étnicas e de gênero – ao mesmo tempo que celebra a profusão de diferenças. Legitimando o status quo por outras vias, a teoria queer se arrisca a erigir uma nova mitologia branca (especialmente se considerarmos que a luz branca é a mistura de todas as luzes enxergadas pelo olho humano): assim como a filosofia gostaria de apagar a metáfora, a teoria queer gostaria de apagar não somente a heteronormatividade, mas a própria figura do heterossexual (por mais fluida que ela já seja hoje em dia) – e, a fortiori, do homossexual.
(1) E de outros filósofos franceses (não no artigo de Lugarinho, : Foucault, Lyotard, Deleuze, Baudrillard – os “pós-estruturalistas”. Esse agrupamento, por demais artificial, surgiu num determinado contexto acadêmico nos Estados Unidos – contexto esse que se apropriou desses filósofos à custa da homogeneização conceitual (de modo que o termo “desconstrução” chega a ser usado indiferentemente, quer se trate de Derrida ou não). Um bom começo para saber dessa história é o livro de François Cusset, Filosofia Francesa: Influência de Foucault, Derrida, Deleuze & Cia), publicado no Brasil pela Artmed.
(2) Jonathan Culler, em On Deconstruction: Theory and Criticism after Structuralism, fala de uma “textualidade geral e indiferenciada” no âmbito do desconstrucionismo – como se textos filosóficos pudessem ser lidos como literários e vice-versa. “Indiferenciada” nessa expressão não implica a ausência de termos diferentes, mas de estruturas diferentes. É assim que a teoria queer pode perseguir o ideal de uma sexualidade indiferenciada, na medida em que pretende implodir o edifício sexual do Ocidente.
(3) Daniel Menezes escreveu, aqui na Carta Potiguar, uma crítica ao manifesto queer escrito (aqui) por um grupo de pessoas que realizaram a ocupação do banheiro masculino do bloco G do setor II, na UFRN. Apesar do propósito de denunciar a força do heteronormatismo, os ocupantes, segundo ele, reproduzem as mesmas hierarquias por eles criticadas. A recusa em estabelecer o diálogo com as instâncias institucionais da UFRN é o reverso da moeda, pois poderia a própria UFRN ser a primeira a arrastá-los de lá. Com efeito (e já que mencionei o termo “hospitalidade” acima), eles deveriam estar cientes de um problema: se deve haver uma hospitalidade incondicional – que permita, por exemplo, que eles tenham feito o que fizeram -, essa hospitalidade só pode existir através de uma hospitalidade condicionada (contaminada pela incondicionalidade do gesto hospitaleiro), que possibilitaria mesmo a instituição de um banheiro misto (ou de vários, quem sabe), a exemplo daquele que existe no departamento de Artes da mesma instituição. As críticas feitas aos estudos queer podem ser encontradas (com as devidas referências) no verbete correspondente da Wikipédia (em inglês).