MANIQUEÍSMO
Há um maniqueísmo às avessas que tende a se configurar como um escudo protetor contra a crítica e a enquadrar pejorativamente, sem pesar os argumentos em jogo, qualquer questionamento como sinônimo de atraso, conservadorismo. Um jeito maroto de blindar ações e seus alicerces estratégicos supostamente organizados contra a opressão de classe, de gênero, etc.
O CASO DA LANCHONETE
Na UFRN, tal retórica é bastante comum. Recentemente, um movimento organizou um ato contra a dona de uma cantina que funcionava no setor II daquela instituição. A demanda era legítima: melhores condições e mais opções para o consumo de alimentos.
Os meios empregados, no entanto, foram primários, além de desrespeitosos para com alguns dos envolvidos. Alçada a condição de representante do “capital explorador”, uma pequena comerciante de salgadinhos foi pintada como um demônio, que tratava inadequadamente suas funcionárias. Panfletos foram produzidos e, não raro, a dona da cantina escrachada pelos mais exaltados.
De modo incrivelmente caricaturado, os discentes aplicaram as descrições marxistas do século XIX sobre a luta dos trabalhadores para uma realidade completamente distinta. Só depois de muito tempo atentaram para o que deveria ter sido levantado desde o início: a comerciante cobrava caro, pois teve de se adequar às regras do jogo. É que a licitação feita pela UFRN para utilizar o espaço premiava quem pagava o maior valor para a universidade. Era o modelo regulatório e não a suposta maldade de alguém o “culpado” pelo preço considerado elevado. Hoje, despido de organização, o corredor do setor II se assemelha a uma feira de ambulantes, que não foram selecionados – outros comerciantes não tiveram o direito de vender suas mercadorias naqueles espaço –, nem muito menos devidamente fiscalizados pela instituição.
Aqueles que sempre aparecem para “contabilizar” politicamente diante das aventuras alheias foram exaltados. E os críticos da patacoada enquadrados como “defensores do capital”, “de direita” e ineptos diante da exploração. No fim, a idéia não era debater, mas apenas desqualificar os opositores do modo como tudo foi (não) articulado.
CERCO AUTORITÁRIO
O cerco autoritário, que cerceia a fala de quem não pensa como “a corrente” – à esquerda ou à direita –, ganha terreno numa instituição, que deveria incentivar justamente o seu contrário.
A OCUPAÇÃO DO BANHEIRO DO SETOR II DA UFRN
Essa cortina de fumaça é mais uma vez erguida no caso da ocupação do banheiro feita por alguns alunos no setor II da UFRN. ( para saber mais: http://bitly.com/14JSt7l ). O ato contra a opressão de gênero vem sofrendo críticas veladas. No entanto, ninguém quis mais abertamente falar sobre o assunto porque, conforme eu ouvi, “não queria confusão para o seu lado”. Outros, tratando a ação como “uma brincadeira de pervertidos”, também preferiram se calar.
Não concordo com nenhuma das duas perspectivas, apesar de compreendê-las. Uma universidade não pode ser o espaço do silêncio. A fala indagadora – ou apoiadora – deve ser respeitada. E manifestação não pode ser encarada – desqualificada – como coisa menor. Questionar é um meio, inclusive, de levar os agentes e suas demandas a sério. E assim procederei.
TEXTO QUE REPRODUZ O PENSAMENTO SELVAGEM
O texto-protesto ( leia aqui: http://afetadxs.blogspot.com.br/2013/08/medode-glitter-escritoem-15082013-as.html ) escrito pelos estudantes expressa o desejo de arrasar com todas as classificações de gênero, além de suas conseqüências.
Assim, o manifesto inicia:
“O banheiro dos homens foi ocupado. E não como de costume, por seus corpos castrados de cu, sua inteligência de self-made man, sua racionalidade a toda prova, suas políticas viris e todas essas mijadas-em-pé do macho hétero ocidentalóide. O banheiro dos homens está, desta vez, ocupado por uma horda de homens fracassados, sapatânicas assassinas, bichas anômalas, translésbichas extra-terrestres; gente do fora, gentália, gente que não fala a língua da normalidade e que, por isso, procria dialetos estrangeiros; gente que estrangeiriza o de casa, porque não tem casinha, caixa, etiqueta, padrão de fábrica.”
Mas, logo em seguida, aquilo que o antropólogo Levi-Strauss chamou de pensamento selvagem – o sistema social classificatório incorporado no processo de socialização pelos sujeitos, inconscientizado, naturalizado e contra o qual todo o pensamento crítico deve lutar – rouba à cena.
Diz o texto:
“O banheiro dos homens foi ocupado por gente que resiste a viver com medo de não ser homem, gente que desfaz o homem, implode-o em submasculinidades.”
Que “homem” reificado é esse que eles criticam?! Há um homem congelado, nessa acepção, ou apenas construíram um estereotipo, para ficar mais fácil depois de “bater no espantalho”?!
O “homem”, conforme o texto afirma, é o “homem de verdade”. Mas que verdade é essa? Uma contradição se forma: um texto de inspiração queer cria um regime naturalizado “de verdade” contra o qual é preciso lutar. Mas esse “homem de verdade” existe, ou não passa de uma mera caricatura produzida pelos autores do texto?
Eis a resposta verbalizadora da classificação selvagem irrefletida. O “anti-homem” é aquele que não tem: “medo de glitter, de plumas, de tinta fluorescente, de esmalte para unhas, de blush e sombra, medo de ganhar um beijo grego e gostar e de ser visto gostando, medo de ser visto não sendo homem… Nós, que somos diariamente afetadas pela patética violência desses castrados, perguntamos a nós mesmas: por que insistir em temer sujeitos tão impotentes e estéreis?”
O que assombra o “homem de verdade” é uma versão “plumas” do homem? Achando que estão criticando o binarismo, os autores do texto só cultivam o lugar comum de que o avesso ao “homem de verdade” é, como se diz na linguagem preconceituosa-brasileira, a “bicha louca”, que gosta de esmalte e lantejoula.
Ao invés de crítica, só a entronização de algo que já é muito bem trabalhado pela nossa cultura – ou é “homem de verdade” ou, então, tem de se vestir como “mulher”, ou como um freqüentador do “baile das kengas” do carnaval de Pirangi / Barreta. Ou “homem de verdade”, ou “purpurinado”. Fica a pergunta: não é possível não ser “homem de verdade”, e, ao mesmo tempo, não utilizar glitter?! As várias afirmações da heterossexualidade e homossexualidade no mundo dizem que sim. Mas o texto parece entender que não.
ANTIHOMOFOBIA HOMOFÓBICA
Uma (pseudo) crítica da homofobia, que tem desdobramentos homofóbicos, perpassa também todo o opúsculo. Os autores revelam em tom solene:
Nossas festas são muito melhores, nossos corpos mais vorazes, nossas bocas gulosas, a dança é farta e excitamos cucetas cósmicas; queremos instigar fendas onde não existem fendas, orifícios por onde contrabandear alegrias anormais para o coração do Império de normalidades mornas.
Ora, a explosão das hierarquias e classificações pode ser engendrada pelo estabelecimento de uma nova “superioridade”?! É aí que a (pseudo) crítica da homofobia homofóbica se revela. Afinal, o gay, a lésbica, o transexual não são melhores (nem piores) do que os heterossexuais (heteros também não podem ser tratados de modo uniforme, como o texto faz). São apenas diferentes. Alguns são legais, outros são chatos. Alguns têm caráter e outros não. Como qualquer outra pessoa, alias. Mas a antihomofobia homofóbica tenta vender a (falsa) idéia de que são superiores. Um preconceito às avessas que combate versões naturalizadas dos atores com novas visões petrificadas. Ao invés de afirmar a alteridade, só a reificação de uma auto-imagem supostamente mais abonadora.
UTILITARIZAÇÃO DO CORPO
Jean Baudrillard desvenda outro erro interessante do discurso mobilizado pelo texto. Em uma crítica feita à obra de Michel Foucault, atentou para o sistemático emprego de uma visão utilitarista por parte deste último em relação ao corpo. Segundo Baudrillard, Foucault teria reproduzido um esquema de raciocínio da idade média, sendo que com uma nova roupagem: enquanto num período anterior diziam – você tem uma alma e deve fazer de tudo para salvá-la, cultivá-la da melhor forma. Agora se fala: salve o seu corpo, potencialize-o. Em ambos os casos, a lógica não é a da afirmação autônoma do desejo.
O manifesto do setor II segue a mesma linha utilitária hierarquizante quando menciona: você é castrado, eu não. Mais uma vez: ao invés do reconhecimento pela diferença, a valoração auto-imagética acrítica pela superioridade.
A crítica de Baudrillard pegou Foucault no contrapé. Os dois haviam combinado de cada um publicar um artigo, comentando a obra do outro. O texto gerado por Baudrillard, não apenas desagradou Foucault, como também o fez desistir de veicular uma análise em relação à obra do amigo. Mais. Foucault procurou o editor da revista responsável pela publicização, para tentar impedir que o texto de Baudrillard fosse veiculado. Não conseguiu.
RESSENTIMENTO CONTRA INSTITUIÇÕES
Além de criticar a esquerda e seu projeto unitário (aonde viram esse consenso dentro da esquerda?), o texto ainda é atravessado pela aversão ressentida contra o que chamam de “respeito das instituições”. O estranho, além de contraditório, é que não querem se reportar à reitoria e seus funcionários, mas desejam que a mesma instituição permita o ato, lhes proporcione segurança para tanto.
A FAVOR DO SISTEMA
A estratégia de negar os supostos autoritarismos de gênero sem diálogo e reflexão discursiva, sem o estabelecimento de consensos autônomos cria uma tentativa de atentar contra o sistema, que, na verdade, como disse acima, se serve dele e dos seus esquemas consagrados. E mais: a “matrix” não sofrerá um único arranhão com tais atos. Pelo contrário.
LIMPEZA
Eu, cá com os meus botões, torço para que tenham limpado o banheiro, pois que, do contrário, a tarefa cairá nas costas dos funcionários.