Participei na sexta passada da banca de um excepcional livro-reportagem. “Auri, a anfitriã – Memórias do Instituto Penal Feminino Desembargadora Auri Moura Costa” conta a história de quatro apenadas no presídio feminino do Ceará. Obra de Aline Moura e Bárbara Almeida.
Recomendo a todos a leitura.
Segue meus comentários no formato de resenha.
Foucault se preocupou com as relações de poder, com o sujeito inserido nessas relações, com a violência que se apresenta quando o poder manifesto em relações se desgasta. Foucault, por isso, se preocupou com loucos, manicômios, com o discurso da ciência, com a sexualidade, com os controles e as disciplinas sobre as vidas. Sobre os corpos. Foucault, na sua luta contra as prisões, se preocupou com espaços como Auri.
O diálogo entre as autoras, as personagens, a narradora – um diálogo muito e absolutamente feminino – perpassa numa voz guia, discreta, do pensador francês. Tenho, portanto, a sensação que ele teria gostado muito de ler esse texto. Poderia eventualmente criticá-lo aqui e ali, mas travaria um encontro profícuo com tal literatura que me deixou mais enriquecido e, ao mesmo tempo, envaidecido por ter-me sido permitido lê-la. Agradeço bastante, quase sem palavras, o privilégio.
Na melhor tradição do texto jornalístico que dialoga com a literatura, Auri nos conta uma história que cativa, emociona, conduz à reflexão. Nem sempre temos a certeza se os fatos – termo, aliás, que não me apetece muito – se deram como relata nossa narradora. Mas isso pouco importa porque ela sabe como nos conduzir, adequadamente, ora sobre a linha amarela, ora para fora dela. E assim, nos emociona e encanta, assim como nos irrita e incomoda quando necessário.
Auri é uma narradora evidentemente onipresente, mas não tem muito o que Bakhtin chamaria de “excedente de visão” – ela não sabe o que se passa, por exemplo, no interior de suas hóspedes. Por isso, provavelmente, o relato ganha contornos ainda mais nítidos de um romance polifônico em que as autoras e seu sujeito-narrador dão espaço às vozes das personagens que, tais como embriões, habitam as entranhas de Auri.
Auri não sabe de tudo o que se passa com suas hóspedes, mesmo que testemunhe tudo. Ela não entra no inexpugnável recôndito de seus corações, a não ser quando elas mesmas decidem rasgar seu interior em confissões dolorosas.
Deitamos nas pedras, assim como Patrícia dorme sobre uma pedra depois de fumar tantas delas.
Entramos na tranca, nos indignamos, mesmo que Auri seja incapaz de perceber o quanto de desumanidade existe naquela sala. A tranca é encarada com naturalidade, assim como a disciplina própria ao sistema penitenciário. A falta de consciência do ser material que nos conta a história é a mesma falta de consciência do sistema imaterial que o mantém. Mas o “cu da cobra” é legal?
E nós, leitores, somos apresentados a realidades que, por vezes, nós desconhecíamos por completo. Aliás, essas são as impressões expressas também por Bárbara, que comenta nunca ter passado além do atendimento de uma delegacia antes de aceitar o desafio de contar essas histórias.
A presença de Foucault enriquece tudo isso. Mas eu me pergunto: Cinara realmente lia Foucault? Foucault estava na biblioteca de Auri? O Foucault de “Vigiar e Punir”? A direção não percebia que Foucault seria uma influência mais insidiosa que uma cartomante?
O papel do narrador, do autor são melhor compreendidos com base nele. Afinal, com evidente clareza, o autor desse livro é apenas um organizador de discursos. E o autor, menos que Aline e Bárbara, é a própria Auri.
Usei o masculino nos parágrafos anteriores propositadamente.
O livro mexe com maestria na oposição masculino e feminino. Oposição mesmo. Quase não há diálogo possível – diálogo que, talvez, se manifeste melhor na masculinização de tantas relações e de tantas hóspedas.
É a lei dos homens. É a separação dos machos. São os machos que conduzem a vida de cada mulher ao inferno. É sua submissão a eles que se reproduz todo instante. A lei dos machos, dos homens, sempre dominou tais mulheres até que elas se viram abrigadas em tão terrível anfitriã. E tão amável anfitriã.
Queria, então, destacar, pontuando, algumas questões:
O texto é um primor. Em raríssimos momentos notamos problemas de revisão. E a unidade estilística é notória, o que chama muita atenção por se tratar de uma obra a quatro mãos.
A diagramação e as fotos traduzem a atmosfera que o próprio texto aponta. Tudo nos conduz a conhecer as entranhas de Auri.
Em determinado, o livro traz uma reflexão sobre o controle, que mesmo “em suas mentes (…) ainda se faz eficaz”. Eu que tenho refletido tanto sobre distopias recentemente, principalmente diante do mundo contemporâneo cibercultura e um tanto distópico, vislumbro um diálogo imaginário com George Orwell e seu “1984”. O coração segue sendo nossa única fortaleza inexpugnável. Não traímos ninguém se não o negamos em nosso coração. E isso aparece no livro de vocês, mesmo quando há dificuldade das personagens em reconhecerem a voz do coração. Aliás, de vez em quando, vi a própria Auri tento dificuldades de reconhecer a voz de seu coração e de compreender o que era dito internamente.
O masculino, o feminino, o grupo, a gang, a organização social me remeteu em muitos momentos, como quando vocês contam a história de Jéssica e Maribel, à reflexão sobre laços de filiação. Parecem-me mulheres em busca de filiação. Talvez por isso tantos homens, tantas violências, a proteção das pitbulls do presídio, tantos filhos, tantos crimes, tantas voltas.
A história de Patrícia evidencia o papel da religião, do esoterismo, como também do sincretismo. Ela era evangélica, lia livros espíritas e se consultava com cartomantes. Faz pensar na relação entre tudo isso e a disciplina do poder coercitivo do estado e do presídio. Até porque certas práticas religiosas e/ou espirituais serão consideradas perigosas.
A pergunta que não quer calar e que nem Auri sabia: Patrícia estava grávida mesmo?
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E por fim: excelente a forma como a discussão sobre a relevância das penas, do sistema penal, da disciplina, da lei e do poder do estado sobre mentes e corpos, o biopoder, emerge de Foucault no discurso de Auri. Auri é uma boa leitora do francês e tem consciência que existe para separar, por seus muros, uma leva de mulheres pobres, indiferenciadas, mantidas ignorantes e apartadas do sistema social vigente, da sociedade. Dos homens de bem. De bem não: de bens.