DA ESTRATÉGIA DE DESMOBILIZAÇÃO, PASSANDO PELA DE PACIFICAÇÃO E DOMESTICAÇÃO E CULMINANDO NA CONCILIAÇÃO NACIONAL REFORMISTA: UMA ANÁLISE DAS RESPOSTAS DO STATUS QUO À RECENTE ONDA DE PROTESTOS NO BRASIL.
Prof. Vantiê Clínio Carvalho de Oliveira – Doutor em Ciências Sociais.
[continuando análise de discurso da presidenta] 2.2.6 – Discussão sobre Mecanismos de Combate à Corrupção:
“Precisamos muito, mas muito mesmo, de formas mais eficazes, de combate à corrupção. A lei de acesso à informação, sancionada no meu governo, deve ser ampliada para todos os poderes da República e as instâncias federativas. Ela é um poderoso instrumento do cidadão, para fiscalizar o uso correto do dinheiro público. Aliás, a melhor forma de combater a corrupção, é com transparência e rigor.”[aqui, a presidente procede à redução final – que será repercutida pelas grandes empresas midiáticas – do larguíssimo leque de demandas dos protestos em questão, a uma pretensa demanda maior: acabar com a corrupção. Diante do que foi dito anteriormente, bem como do contexto deste discurso, resumidamente, a ideia que se oferece aqui é: ao invés de se buscar uma libertação do sistema como um todo, o que se deve buscar é moralizar o sistema…!
“Vão-se os anéis e fiquem os dedos!”
E, para dar exemplos, Dilma Rousseff inicia utilizando o espaço da cadeia de rádio e televisão disponibilizada ao poder público da presidência da República para… Fazer autopropaganda do seu governo, enfatizando o seu ato de sancionar a lei de acesso à informação! Ora, já vimos, no comentário e notas acima, como este cidadãoauxiliartécnico (e agora gandula que aponta “bola fora”) – do jogo político no Estád(i)o “democrático participativo” que se propõe aí – poderá se configurar, na prática, em um mero espectador privilegiado – posto enxergar tudo pela vitrine dos bancos de dados públicos – das jogatinas entre os poderes do Estado e o grande capital, visto que, em não havendo condição de acesso generalizado aos trâmites, linguagens, códigos jurídico-contábeis e know how específicos de cada procedimento, o tão propalado “controle cidadão” sobre os gastos públicos não passará de um mito ou, na melhor das hipóteses, de uma atividade factível apenas para uma pequena elite – que, como toda elite, pode ser mais facilmente corrompível (Rousseau) – de profissionais com uma formação técnica e um tempo disponível que lhes permita o exercício de tal controle.]
2.3 – Copa de Futebol:
2.3.1 – Abordagem do Tema do Endividamento da União com Vistas aos Investimentos na Copa de Futebol:
“Em relação à Copa, quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas, é fruto de financiamento, que será devidamente pago pelas empresas e os governos, que estão explorando esses estádios. Jamais permitiria, que esses recursos, saíssem do orçamento público federal, prejudicando setores prioritários, como a saúde e a educação. Na realidade, nós ampliamos bastante os gastos, com a saúde e educação, e vamos, ampliar cada vez mais.”(24)
2.3.2 – Insistência na Proposta de Aplicação de Todos os Royalties do Petróleo na Área da Educação (um aparente deslocamento de tema):
“Confio, que o Congresso Nacional, aprovará o projeto que apresentei, para que todos os royalties do petróleo, sejam gastos, exclusivamente com a educação.”
[neste(s) últimos(s) trecho(s), a presidente – a pretexto de “desmentir” a ideia de que recursos públicos federais estariam sendo utilizados para financiar os gastos com a infraestrutura da Copa de Futebol, sem um devido retorno para os cofres públicos – termina por “sugerir”, nas entrelinhas da sua fala, que o governo teria contraído empréstimos com bancos, atuando como uma espécie de fiador dos consórcios formados pelas empreiteiras/governos estaduais – “(…), quero esclarecer que o dinheiro do governo federal, gasto com as arenas, é fruto de financiamento, que será devidamente pago pelas empresas e os governos, (…)” – e aquele, por sua vez, teria repassado o dinheiro para estes, a título de investimentos a fundo perdido (investimentos realizados sem expectativas definidas de retorno do montante investido), visto as condições e prazos do pagamento das dívidas destes para com aquele não terem sido deixados claro neste discurso!
Ainda: a presidente se coloca como a grande líder – ou, a Grande Mãe? – que ouve aqueles que “pedem mudança”, criando assim uma imagem segundo a qual os manifestantes ao invés de serem vistos como protagonistas que pelo exercício das suas próprias forças influem no curso dos acontecimentos, são, a partir daqui, declarados como “pedintes” que dependem da “Grande Mulher” para verem suas demandas serem atendidas.]
Ora, visto que os bancos não fazem empréstimos sem garantias de retorno – com juros! -, no fim das contas, a situação que aí se configura é exatamente aquela afirmada pela ideia que a presidente pretende “desmentir”: entre todos os envolvidos nestas operações financeiras, o único agente que teria ficado decididamente “amarrado” pelas condições e prazos de pagamento que, com certeza, teriam sido “prudentemente” fixados pelos bancos, seria o governo federal!
Talvez seja por isto que a presidente, na continuidade desta fala – de forma aparentemente deslocada do tema em pauta, mas que ganha sentido com o raciocínio a seguir – aproveita o momento de comoção social para fazer uma “sutil pressão” sobre o Congresso Nacional – “confio, que o Congresso Nacional, aprovará o projeto que apresentei, para que todos os royalties do petróleo, sejam gastos, exclusivamente com a educação” -, antecipando assim (nas entrelinhas), a eventual responsabilidade por um possível desequilíbrio futuro do orçamento público federal para a educação, caso os recursos extras do petróleo não sejam disponibilizados para este setor e os consórcios formados pelas empreiteiras/governos estaduais não configurem a solvência necessária para ressarcir a união – o que, em caso de investimentos a fundos perdidos, não seria nenhuma surpresa -, levando, em última instância, à necessidade de se lançar mão de recursos públicos federais regulares para quitar as dívidas com os bancos. (25)]
2.3.3 – Apelação pela Garantia de um Clima Pacífico e Hospitaleiro Durante a Copa de Futebol:
“Não posso deixar de mencionar, um tema, muito importante, que tem a ver com a nossa alma, e o nosso jeito de ser”[aqui a presidente, mais uma vez, com o fito de canalizar as energias sociais para os interesses do Estado Nação, apela para um mito nacionalista: o da existência de uma suposta “essência – alma – do “povo brasileiro” (26), para além de todas as diferenças individuais, de culturas regionais, de interesses de classes sociais, de orientações políticas etc.]: “o Brasil, único país que participou de todas as copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte.”[aqui a presidente, mais uma vez, incorre em omissão da verdade: todos sabem que “o Brasil” – se por isto se entende os grupos de pessoas nascidas neste território -, nem sempre foi “muito bem recebido em toda parte”.
Ano passado mesmo ocorreram incidentes na Espanha em que brasileiros foram barrados em aeroportos – junto com negros e mexicanos – e, após serem muito mal tratados, foram mandados de volta para o Brasil. Isto aconteceu em um contexto de agravamento, naquele país, dos efeitos da crise econômica mundial a que já fizemos referência.
Neste contexto, o governo daquele país, com vistas a desviar a atenção da população espanhola – que, àquele momento, se mobilizava em protestos maciços e vigorosos contra a situação vigente – das verdadeiras causas da crise, passou a investir em políticas xenófobas, para transmitir a mensagem falaciosa de que a escassez de empregos se deve à concorrência dos imigrantes com a população nativa – e não (para além do fenômeno globalizado de desvio de investimentos do setor produtivo para o financeiro) a uma dinâmica própria à incorporação, na produção capitalista, de novas tecnologias informacionais e de automação, as quais reduzem cada vez mais a necessidade de mão de obra, com vistas à redução dos custos e à consequente multiplicação de lucros.] “Precisamos, dar aos nossos povos irmãos, a mesma acolhida, generosa que recebemos, deles. Respeito, carinho, e alegria, é assim, que devemos tratar, os nossos hóspedes.”[aqui, a presidente deixa escapar, num “ato falho” psicanalítico, uma proximidade com o empresariado hoteleiro, ao adotar um termo próprio a este ramo de negócios: “hóspedes” – ao invés de visitantes. Vê-se, então, que a preocupação aí não é estritamente com a garantia de um bom tratamento para com os torcedores estrangeiros, mas, ainda mais: com a garantia das condições necessárias a uma melhor exploração destes “consumidores” por parte da indústria do turismo/da Copa. Enfim: rebanhos bem tratados são melhores para serem ordenhados.]
“O futebol, e o esporte (sic), são símbolos de paz e convivência pacífica entre os povos. O Brasil merece, e vai fazer uma grande Copa.”[aqui, a presidente além de distinguir futebol de esporte – claro, porque o futebol, dentre os esportes, é a melhor e a maior das indústrias de entretenimento, no mundo! -, ainda adota um estereótipo que não se sustenta perante os fatos: a ideia de que as competições desportivas são símbolos de paz entre os povos. Ora, toda competição desportiva constitui-se em uma transposição, para o campo simbólico, de uma atitude de contenda. Para ficarmos apenas em dois exemplos, lembremos os usos dos Jogos Olímpicos, feitos pelos Estados Unidos e a União Soviética, durante o período da Guerra Fria (sem falar na Olimpíada nazista de 1936, em Berlim), com a finalidade de demonstrarem, cada potência de sua parte, a superioridade de seu modelo político-econômico em relação ao modelo da rival.
Lembremos, ainda, das nossas tão familiares provocações bairristas – com vieses xenófobos – entre brasileiros e argentinos, fenômeno impulsionado pelas históricas disputas futebolísticas entre as duas seleções dos países em pauta. É evidente que o que a presidente pretende aqui é alcançar uma pacificação dos protestos, pela via da sua orientação para a patriotada, garantindo assim a dominância das atitudes de conservação das instituições de propriedade capitalista/estatal, fator este fundamental para a garantia das dinâmicas econômicas de multiplicação dos lucros sobre os capitais investidos na Copa.]
3 – A Conclusão (reafirmação da tese/estratégia do governo):
“Minhas amigas e meus amigos:”[a esta altura, já podemos cogitar de que amigos a presidente está falando, visto que, como pontuamos no início, não pode, logicamente, se tratar de toda a sua audiência.] “eu quero repetir, que o meu governo, está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança.”[aqui, a presidente qualifica “as vozes que pedem mudanças” como “democráticas”, certamente, em uma alusão à democracia representativa, o que, para uma mobilização que teve como uma de suas maiores marcas a rejeição à presença de bandeiras de partidos políticos, é, no mínimo, uma referência “forçada”.
Ainda: a presidente se coloca como a grande líder – ou, a Grande Mãe? – que ouve aqueles que “pedem mudança”, criando assim uma imagem segundo a qual os manifestantes ao invés de serem vistos como protagonistas que pelo exercício das suas próprias forças influem no curso dos acontecimentos, são, a partir daqui, declarados como “pedintes” que dependem da “Grande Mulher” para verem suas demandas serem atendidas.]
“Eu quero dizer a vocês, que foram(pausa)pacificamente às ruas: eu, estou ouvindo vocês.”[aqui, a presidente reforça a tática de isolamento dos “radicais”: contrariamente ao que havia dito mais acima, ela não se dispõe a presidir “todos os brasileiros”, mas apenas àqueles que se manifestam pacificamente.] “E não vou transigir com a violência e arruaça.”[aqui, reforça-se a tática de estigmatização das ações radicais de sabotagem da propriedade capitalista/estatal, como sendo simples violência comum – “arruaceiros” -, sem nenhum conteúdo político.]
“Será sempre em paz, com liberdade e democracia, que vamos continuar, construindo juntos, esse nosso grande país.” [nesta frase final, a presidente recapitula sinteticamente – e, desse modo, reforça – os dois grandes objetivos deste discurso: por um lado, reforçar a tática de (estigmatização e) isolamento dos “radicais” – afinal, será sempre em paz que… – e, por outro lado, promover a estratégia da reconciliação das energias das mobilizações sociais com a institucionalidade – …vamos continuar, construindo juntos, esse nosso grande país.] “Boa noite.”
Na semana seguinte, a quarta e última semana de Junho, os poderes legislativos empreenderam um verdadeiro mutirão para acelerar certas discussões – e suas respectivas decisões – que constavam no rol das reivindicações dos manifestantes.(27) Naquela semana se viu algo inusitado: congressistas trabalhando durante o período de festejos juninos e até à Sexta Feira!
Na Terça Feira, dia vinte e cinco, um Senador da República – durante uma sessão daquela legislatura, que foi transmitida ao vivo pela Rádio Senado – fez um pronunciamento durante o qual citou a seguinte ideia de um estadista português: “Quem não tem a coragem das reformas, deverá enfrentar a ousadia da revolução”…! Citação bastante elucidativa dos receios que mobilizavam o Status Quo naquele momento!
Na Câmara, a PEC 37 foi derrubada; a proposta da presidente de aplicação dos royalties do petróleo na educação passou, inicialmente, com um “ajuste”: a redução de cem para setenta e cinco por cento do montante dos recursos, a ser aplicado à educação, ficando o restante a ser aplicado na área da saúde; as alíquotas do PIS/PASEP e da Cofins incidentes sobre os serviços de transporte público foram reduzidas a zero; foi aprovada a admissibilidade da PEC 196/12, que institui o voto aberto para processos de cassação de mandatos de parlamentares e o Senado aprovou um projeto que torna a corrupção crime hediondo. Na primeira semana de Julho, o projeto da “cura gay” foi arquivado.
Vivemos, conforme o que acabou de ser dito, um momento histórico em que vem ganhando cada vez mais espaço (especialmente entre os jovens) uma sensibilidade – um “espírito do tempo”, diria algum hegeliano – que se aproxima muito mais das críticas e proposições historicamente encampadas pelos anarquistas, o que pode significar, no limite, a fermentação de um processo de ruptura com o próprio modelo civilizatório/antropológico dominante – fundado nas instituições da hierarquia e poder privado/estatal.
De sua parte, a Presidência da República propôs, de chofre, uma nova constituinte, mas, ante as contraposições de juristas que alegaram que uma proposta como esta não cabe nos limites constitucionalmente estabelecidos – visto que a constituição “não dá um tiro no próprio pé”, deixando margens para a sua própria revogação -, esta proposta foi modificada para a da implementação de um plebiscito sobre uma reforma política, o que gerou outra discussão – marcadamente, entre governo e oposição – sobre o que seria mais viável e interessante a este respeito, se um plebiscito ou um referendo. Dilma Rousseff começou a empreender, também, encontros com lideranças de movimentos sociais institucionalizados – as “novas elites” -, para “ouvir” as suas “vozes”/reivindicações.(28)
Por sua vez, o poder judiciário e as polícias também se apressaram em dar mostras de prontidão e legitimidade cívicas: já na Quarta Feira, dia vinte e seis, o S.T.F. expediu mandado de prisão para o deputado federal – pelo P.M.D.B. de Rondônia -, Natan Donadon, condenado desde 2010 por peculato e formação de quadrilha. Na Sexta Feira, dia vinte e oito, o deputado Danadaon estava preso! Também, numa ação conjunta entre o Poder Judiciário, o Ministério Público Federal, o Ministério da Justiça, a Advocacia Geral da União e a Polícia Federal, foram repatriados, da Suíça para o Brasil, pouco mais de dez milhões de reais desviados – da obra de construção do prédio do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo – pelo juiz Nicolau dos Santos Neto, vulgo “juiz Lalau”, ainda na década de 1990!
Ainda: em várias municipalidades, as tarifas de transportes públicos coletivos tiveram seus valores reduzidos, num efeito cascata.
“Vão-se os anéis e fiquem os dedos!”
Como se vê, o Status Quo, de cima abaixo, de um lado a outro, apressou-se em dar mostras da viabilidade/factibilidade da reforma das instituições, com vistas a promover a grande (re)conciliação das energias das mobilizações sociais com a institucionalidade nacional.
Por outro lado, os protestos e manifestações não cessaram – apesar de não apresentarem mais as vultosas cifras dos milhões de manifestantes verificadas naquele apoteótico dia vinte -, e as grandes empresas de comunicação continuaram a louvar o seu “caráter pacífico” e a estigmatizar e promover o isolamento dos “vândalos infiltrados”.
Acrescentemos que já durante a tarde daquele surpreendente dia vinte, um centro cultural (Ateneu Batalha da Várzea) organizado pela Federação Anarquista Gaúcha – F.A.G. – foi invadido por uma dezena de agentes da Polícia Civil e teve vários documentos e equipamentos apreendidos, bem como houve uma tentativa de aprisionar uma militante da F.A.G. – sem apresentarem mandado de prisão. Tudo isto sob a alegação de que aquela organização anarquista estaria, em colaboração com outras organizações sociais de outros países, difundindo e adotando táticas de guerrilha urbana no Brasil…! É claro que isto não terá sido mera coincidência!
O que o Status Quo, em nível mundial, quer evitar a todo custo – inclusive, deixando que se percam alguns anéis – é uma tomada de consciência generalizada em torno da percepção de que, em política, não existe apenas a opção restrita entre democracia representativa e/ou ditaduras no sentido clássico (e isto implica perceber que os partidos políticos não são, nem naturais, nem necessários a toda e qualquer concepção de democracia)!
Ao ampliarmos a análise dos acontecimentos de modo a situar o caso brasileiro no contexto do quadro de uma série de mobilizações e protestos – potencializados pela já aludida crise econômica mundial – que vêm ocorrendo internacionalmente, seja em países europeus, nas Américas latinas, nos E.U.A. ou em países árabes e, ao chamarmos as atenções para o fato de que praticamente todas estas mobilizações têm em comum formas de organização descentralizadas, não hierarquizadas – que remetem a práticas de democracia direta -, bem como um conteúdo atitudinal caracterizado por uma descrença crescente com relação às instituições estatais em geral – o que pode ser sintetizado no lema popular de recentes protestos argentinos, “Que se Vayam Todos!” -, poderemos afirmar, de forma mais compreensível, as nossas conclusões.
Vivemos, conforme o que acabou de ser dito, um momento histórico em que vem ganhando cada vez mais espaço (especialmente entre os jovens) uma sensibilidade – um “espírito do tempo”, diria algum hegeliano – que se aproxima muito mais das críticas e proposições historicamente encampadas pelos anarquistas, o que pode significar, no limite, a fermentação de um processo de ruptura com o próprio modelo civilizatório/antropológico dominante – fundado nas instituições da hierarquia e poder privado/estatal. Uma demonstração disto – como se não bastasse as ondas internacionais de mobilizações não hierarquizadas e refratárias ao Status Quo, que acabamos de citar – é uma pesquisa realizada em vários países do mundo, das Américas à Europa, pela organização Transparência Internacional (uma ONG mundial que faz campanha contra a corrupção), e cujos resultados divulgados na segunda semana de Julho atestam que mais da metade das populações entrevistadas considera os partidos políticos indignos de confiança, seguindo-se, no ranking da descrença, os parlamentos, as polícias, os serviços de saúde e o poder judiciário! Óbvio que a descrença se estende aos poderes executivos que, na percepção da maioria dos entrevistados, respondem majoritariamente a interesses particulares!
Talvez, só encontremos situação semelhante na História, um possível paralelo – mesmo que numa dimensão reduzida, limitada à população de um país -, na inicialmente citada Revolução Autogestionária Espanhola. Naquele momento, conforme já dissemos, os anarquistas conseguiram impulsionar – no bojo do processo de desestabilização do Estado republicano, devido à tentativa de golpe dos fascistas – ações de desapropriação de terras, fábricas e empresas de serviços (públicos, inclusive) e, a partir daí, instauraram práticas de autogestão coletiva destes meios de produção, de administração direta da sociedade (econômica e politicamente) por parte de milhões de cidadãos!
E, eis a questão que muitos leitores devem estar fazendo a esta altura: por que a Revolução não perdurou? Resposta: como se não bastasse a luta contra o fascismo/nazismo, os revolucionários ainda foram vítimas de uma aliança traiçoeira entre os republicanos liberais e o Partido Comunista, os quais, com vistas ao restabelecimento do Estado Nacional, empreenderam combate contra os – até então seus aliados – anarquistas, difamando, prendendo, torturando e exterminando os revolucionários!
Como se vê, há precedentes na história que demonstram a disposição das diversas alas em concorrência no campo autoritário/estatista para, em momentos de possíveis rupturas com os paradigmas político-econômicos autoritários, se unirem em torno do combate a um inimigo comum: os libertários! Sim, porque aqui, para além das disputas em torno de interesses de classes e/ou de agremiações políticas, está em jogo uma disputa maior, de projetos civilizatórios/antropológicos: de um lado, estão aqueles que afirmam a necessidade de se instituir uma sociedade verticalizada, para garantir o bom funcionamento e a preservação da “ordem” (seja capitalista ou “comunista”); de outro lado, estão os que apontam as estruturas sociais verticalizadas como sendo aquilo que funda e sustenta a dominação e exploração do homem sobre o homem, advogando assim a necessidade da instauração de relações sociais horizontalizadas.
Atualmente, verifica-se que:
Em vários países – e vários, aqui, inclui “democracias” europeias e a dos E.U.A., “naturalmente” -, organizações anarquistas estão sofrendo ataques policias como aquele perpetrado contra a F.A.G., na tarde do dia vinte.
Em nível internacional, baluartes da intelectualidade – inclusive críticos do capitalismo, como o filósofo e teórico esloveno Slavoj Zizek, que na segunda semana de Julho deu entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura – que, “coincidentemente”, emitem críticas ao caráter “anárquico” das mobilizações sociais em pauta, têm sido arregimentados por grandes empresas de comunicação para opinarem sobre este momento histórico.
Em alguns países, vem se verificando a adoção de estratégias que visam à institucionalização – nos marcos da democracia representativa – destes movimentos tendentes à democracia direta, como foi o caso da recente proposta de criação do partido espanhol do “No”, a partir do que ficou conhecido como os protestos dos “indignados”, em 2011.
Então, percebe-se que o caso brasileiro não é sui generis, mas que se configura no âmbito de um esforço maior do Status Quo internacional, com vistas a neutralizar uma ameaça implícita neste movimento crescente de fortalecimento de uma sensibilidade anti-estatal: a ameaça – para o Status Quo – da possível passagem de um estado de “sensibilidade” aproximável das críticas e proposições anarquistas, para um estado de assunção decidida destas visões libertárias, podendo ser promovida – esta passagem -, potencialmente, pelo “contágio” que a inserção (“infiltração”) da(s) radicalidade(s) libertária(s) nestes movimentos pode gerar.
Nesta disputa civilizacional entre autoritários e libertários, está em jogo uma “luta por corações e mentes”!
Por isto, pode-se entender as ações de investidas da(s) radicalidade(s) libertária(s) contra a grande propriedade privada/estatal como representando uma dupla ameaça contra o Status Quo (ou, de outra forma: como tendo uma dupla potência): por um lado, exerce o já alegado efeito de sabotar, paralisar – mesmo que por um período de tempo muito curto –, momentaneamente, alguns ramos do circuito de produção e reprodução do capital e, por outro lado, exerce a função – nos termos de Paulo Freire – de um ato educativo antropogênico, visto desafiar os manifestantes a romperem com – “vomitar” – um conteúdo subjetivo dos mais importantes para a manutenção do sistema de opressões vigente, ou seja, a crença na sacralidade das instituições!
Diante disto, pode-se, inclusive, questionar seriamente se o Status Quo no Brasil teria acorrido a atender tão apressadamente algumas reivindicações levadas às ruas pelos manifestantes, caso não houvesse se verificado o grande prejuízo que as ações dos “radicais” provocaram para o grande capital – um representante da Federação do Comércio (FECOMERCIO) do RN estimou algo em torno de setecentos milhões de reais, em todo o território nacional -, bem como, caso não houvesse o risco de um contágio e generalização das visões e atitudes da(s) radicalidade(s) libertária(s). Em que pese os espantosos números na casa dos milhões, dos que foram às ruas no dia vinte, é de se questionar, caso as manifestações tivessem se configurado, de forma absoluta, em meras passeatas cívicas – com todos apenas “caminhando, cantando e seguindo as canções”, como queria o Status Quo -, se não se configuraria ali mais um dos corriqueiros atos de descaso dos poderes estatais para com os tão frequentes atos de protestos públicos no Brasil.
O que o Status Quo, em nível mundial, quer evitar a todo custo – inclusive, deixando que se percam alguns anéis – é uma tomada de consciência generalizada em torno da percepção de que, em política, não existe apenas a opção restrita entre democracia representativa e/ou ditaduras no sentido clássico (e isto implica perceber que os partidos políticos não são, nem naturais, nem necessários a toda e qualquer concepção de democracia)!
Quer, também, evitar que se generalize a percepção de que – especialmente em tempos de “globalização” – boa parte dos problemas enfrentados em nível doméstico pelas populações humanas dos diversos países são, no fim das contas, problemas gerados pelo paradigma civilizatório/antropológico dominante que condiciona comportamentos de mando e obediência através de instituições hierarquizadas, com a finalidade de possibilitar às elites econômicas e políticas um melhor controle sobre seus subordinados, para desse modo poderem dominá-los e explorá-los! O mundo é uma grande máfia!
(…) o “Dia Nacional de Lutas” se configurou como “um tiro no pé” das organizações em questão, posto que, pelo contraste entre os números de manifestantes ali presentes – que contaram quase que exclusivamente com seus afiliados e giraram em torno das dezenas de milhares -, e os números daqueles que integraram os protestos autônomos, ficou patente que estes detêm, atualmente, um poder de mobilização muito maior do que aquelas!
Para alcançar seus objetivos, o Status Quo investe na miopia das visões nacionalistas, para, a partir daí, fazer passar a ideia de que as soluções demandadas pelas populações passam por uma ação de reforma do Estád(i)o onde se joga o jogo das elites econômicas e políticas, em contraposição às proposições da(s) radicalidade(s) libertária(s) de destruir este Estád(i)o de coisas pela raiz, para, a partir daí, instaurar em campo aberto um jogo autogestionário/popular em que todos participam, sem privilégios/distinções/hierarquizações institucionalizadas.
O diplomata brasileiro do período imperial, Joaquim Nabuco, teria dito que, à sua época, a questão maior para o Brasil não seria a da escolha entre Império ou República, mas a da abolição da escravatura. Parafraseando esta construção, diremos que aquilo para que as investidas da(s) radicalidade(s) libertária(s) contra a grande propriedade capitalista/estatal aponta(m), é a compreensão clara de que o maior problema da humanidade neste momento histórico, não é o de uma escolha entre democracia estatal representativa (ou mesmo participativa) e/ou ditadura no sentido clássico (visto que, para aquelas, já vivemos em uma ditadura mundial das elites políticas e econômicas, do grande Capital): o grande problema da nossa época – conforme nos apontam as investidas da(s) radicalidade(s) libertária(s) – é o da necessidade de libertação da escravidão ao domínio do Capital e dos Estados, e isto implica nas necessidades de abolição da dominação das grandes propriedades/instituições privadas/governamentais, e de invenção urgente de formas atualizadas de administração direta, pelas coletividades, de sua vida econômica e política.
Isto exige um processo de derrocada de um paradigma/modelo civilizatório/antropológico mundialmente dominante e a instauração de um outro que, como em todo processo deste calibre, não permite previsões seguras de seu desfecho, nem muito menos se decide no espaço de tempo de algumas poucas gerações. Porém, uma coisa é certa: as invasões bárbaras (dos novos “vândalos”) ao grande Império da nossa época já começaram!(29)
Epílogo:
Na Quinta Feira, dia onze de Julho, centrais sindicais historicamente rivais como a C.U.T., a Força Sindical e a CONLUTAS, bem como partidos políticos de esquerda como o P.S.T.U., o PSOL – e até o Partido da Causa Operária -, juntos com seu rival predecessor, o PT(30), fizeram um “Dia Nacional de Lutas” no qual, além de colocarem nas ruas suas respectivas flâmulas (que não vinham sendo bem aceitas nos protestos autônomos), encamparam reivindicações institucionalistas como a democratização do poder judiciário, a redução da jornada de trabalho, o aumento de salários e a revisão do fator previdenciário. Ainda: estas manifestações foram marcadas por uma orientação geral para o respeito à legalidade (diga-se, para o rechaço a investidas contra a propriedade capitalista/estatal), o que se procurou garantir pela via de acordos com as polícias, do direcionamento das passeatas através dos seus tradicionais carros de som, bem como da identificação dos membros das instituições organizadoras – e consequente isolamento simbólico dos demais manifestantes – pelo uso de camisetas padrões.(31)
Vemos, neste ato – que denominamos de “passeata das bandeiras” -, uma investida, por parte daquelas organizações, na tentativa de tomar a liderança das mobilizações populares – onde estavam aquelas centrais sindicais antes da eclosão destas? -, com vistas a conduzi-las para o campo das lutas políticas institucionalizadas (não que as reivindicações por melhorias das condições trabalhistas não sejam necessárias, mas, os antigos sindicatos revolucionários que implementaram a histórica luta pelas oito horas de trabalho, p.ex., nunca perderam de vista o fato de que o trabalho sob a hierárquica propriedade privada/estatal é sempre uma forma de escravidão e deve, em um momento histórico oportuno, ser abolido, ao invés de ser louvado, como se faz hoje no primeiro de Maio).(32)
Porém, o “Dia Nacional de Lutas” se configurou como “um tiro no pé” das organizações em questão, posto que, pelo contraste entre os números de manifestantes ali presentes – que contaram quase que exclusivamente com seus afiliados e giraram em torno das dezenas de milhares -, e os números daqueles que integraram os protestos autônomos, ficou patente que estes detêm, atualmente, um poder de mobilização muito maior do que aquelas!
(As lutas continuam…!)
“Se eu tivesse que responder à seguinte pergunta: O que é a escravidão? e respondesse numa palavra: É o assassinato, meu pensamento seria imediatamente compreendido. Não teria necessidade de um discurso muito longo para mostrar que o poder de espoliar o homem do pensamento, da vontade, da personalidade, é um poder de vida e morte, e que escravizar um homem é assassiná-lo. Por que, então, a esta outra pergunta: O que é a propriedade? não posso responder da mesma forma: É o roubo, sem ter a certeza de que não serei compreendido, embora essa segunda proposição não seja mais que a primeira transformada?
Tenciono discutir o próprio princípio de nosso governo e de nossas instituições, a propriedade: estou no meu direito; posso enganar-me na conclusão de minhas pesquisas: estou no meu direito; agrada-me inserir o último pensamento de meu livro no começo: estou ainda no meu direito.(33)”
(Pierre Joseph Proudhon: O que é a Propriedade?)
***Natal, inverno (fins de Junho a fins de Julho) de 2013.
RETROSPECTO DAS PARTES DO TEXTO:
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